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Vale-tudo científico

A China quer se tornar uma potência também na área acadêmica. Mas suas conquistas são postas em xeque pelo histórico de fraudes e questões morais

Por Filipe Vilicic, André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 30 jul 2020, 19h56 - Publicado em 8 fev 2019, 07h00

Foi com desconfiança que a comunidade científica do Ocidente recebeu recentemente uma notícia extraordinária. De acordo com a Administração Nacional Espacial da China, no dia 3 de janeiro a nave Chang’e 4 desceu na parte oculta da Lua — aquela que não é vista da Terra —, em um feito até então inédito na história. Não só isso: segundo o comunicado, a sonda plantou batatas e mostarda no solo lunar, que, vale frisar, é considerado território internacional. “Esse aparenta ser o primeiro pouso com sucesso no lado mais longínquo da Lua. Um feito impressionante”, disse, no Twitter, Jim Bridenstine, o administrador da Nasa, a agência espacial americana. Note o detalhe: Bridenstine escreveu “aparenta”. Mesmo depois da divulgação das primeiras fotos realizadas pela Chang’e 4 — veiculadas na CCTV, a emissora do Partido Comunista Chinês —, a interrogação sobre a veracidade do êxito da missão permaneceu incomodamente no ar.

Por que tamanha incredulidade em relação a uma conquista que, no fim das contas, se revelou verdadeira? A resposta é simples: há sobre a ciência chinesa uma escura nuvem ética formada por incontáveis casos de fraude e outros procedimentos de caráter duvidoso no âmbito acadêmico — o que deixa a comunidade científica com o pé atrás quando o assunto é China.

Um levantamento realizado pelo site americano Quartz, agregador de notícias corporativas, mostrou que, entre 2012 e 2016, nada menos que 276 artigos científicos vindos da China foram recusados pela comunidade internacional por desconfiança de trapaça. O número representa mais que a soma de todos os textos devolvidos originários de outros países. Em 2017, depois de anos de silêncio sobre o assunto, o Partido Comunista Chinês admitiu que 486 pesquisadores haviam se envolvido em 107 estudos fraudulentos — relacionados tão somente a pesquisas sobre câncer.

Para além da questão das fraudes, a ciência praticada na China também tem se caracterizado por avançar sinais em terrenos que ferem normas éticas observadas pela maioria dos países. Em janeiro do ano passado, por exemplo, cientistas do Instituto de Neurociência da Academia Chinesa de Ciências, em Xangai, foram os primeiros do mundo a clonar primatas — dois macacos — pelo mesmo método que fez surgir a ovelha Dolly, em 1996. O uso da técnica é proibido em primatas em boa parte dos países justamente porque ela poderia ser replicada em humanos. Pois bem: em 24 de janeiro deste ano, uma equipe daquele mesmo instituto ainda realizou a replicação dos macacos, mas agora a partir de um embrião cujo DNA fora manipulado em laboratório. A China, aliás, é pioneira em procedimentos genéticos proibidos em outros lugares. Em novembro de 2018, o biólogo He Jiankui anunciou que criara os primeiros humanos nascidos com genes modificados, algo não permitido nos Estados Unidos e na Europa.

RISCO – Os primatas replicados com DNA editado: proibição fora da China (China Daily/Reuters)

O desrespeito à legislação também é espantoso. De acordo com um levantamento feito pela revista britânica Nature, até ao menos 2012 existiam na China clínicas que realizavam tratamentos com células-tronco — um método que fora proibido pelo próprio governo chinês em 2009.

É inegável que a China vem liderando progressos científicos em áreas como a biomedicina e, de certo modo, a exploração espacial. Nas últimas duas décadas, o Partido Comunista começou a se empenhar para transformar o país em líder global em pesquisas acadêmicas. O presidente Xi Jinping estabeleceu até uma data para isso: o ano de 2049, quando ele espera que a China se torne um “país socialista magnífico e moderno”. Se em 2000 os chineses gastavam o mesmo que a França na área da ciência, hoje já destinam mais dinheiro às pesquisas do que toda a União Europeia. Em seu território também há mais laboratórios do que em qualquer outra nação.

Contudo, apesar do ritmo acelerado da produção científica da China, com mais de 420 000 artigos publicados por ano — o país também é líder mundial nesse quesito —, os resultados continuam sendo constantemente postos em xeque pela comunidade internacional. A boa notícia é que Xi Jinping parece ter compreendido que será preciso atentar para as questões éticas caso queira ver seu país de fato no topo da ciência internacional. Em dezembro, ele anunciou, pela primeira vez, que punirá com cortes de subsídio e multas cientistas que adotarem o que o Partido Comunista considerar “más condutas”. Resta saber o que será tido como “má conduta” em solo chinês.

Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

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