É jornada que merecia, de fato, mais zelo. No primeiro semestre de 1925, Albert Einstein (1879-1955), já premiado com o Nobel pelos estudos sobre física quântica e celebrado pela teoria da relatividade, fez uma viagem de três meses na América do Sul. De 5 de março a 11 de maio, visitou a Argentina, o Uruguai e o Brasil para divulgar seus trabalhos científicos e encontrar as comunidades judaicas. Sua única incursão pelo continente foi registrada em um diário, hábito adquirido em périplos anteriores pelos Estados Unidos, Extremo Oriente, Palestina e Espanha. Ele anotou tudo em um caderno com 72 páginas pautadas, em entradas sucintas, pontuadas por comentários sobre os lugares que visitou, os eventos aos quais compareceu e as pessoas que lhe apresentaram.
Todo esse material foi reunido no livro Os Diários de Viagem de Albert Einstein (Editora Record), previsto para chegar às livrarias na segunda semana de maio. O historiador Ze’ev Rosenkranz, editor no Einstein Papers Project, entidade que reúne os arquivos do cientista, foi o responsável por organizar a papelada. A fim de obter um retrato mais abrangente das aventuras no sul, Rosenkranz cotejou as anotações com artigos de jornais, documentos pessoais, discursos e relatórios diplomáticos. Na edição, o arquivista também incluiu cartas e cartões-postais familiares. É um tesouro.
Há muita especulação em torno da motivação de Einstein para a travessia transoceânica. Alguns historiadores batem na tecla evidente: atalho para a disseminação das teorias que o faziam famoso e para o intercâmbio científico. Pode ter havido, contudo, outra razão, comezinha e humana, demasiadamente humana, para a fuga do refúgio em Berlim: afastar-se de uma relação extraconjugal com sua secretária à época, Betty Neumann, muitos anos mais jovem do que ele, um tímido por excelência. “A viagem pode ter fornecido uma maneira conveniente de encerrar o relacionamento e permitir que ele e a mulher, Elsa, passassem algum tempo separados depois de um período que deve ter sido desafiador para ambos”, anota Rosenkranz.
O Brasil representava capítulo fundamental da carreira de Einstein, um ponto distante e sentimental. Foi em Sobral, no interior do Ceará, em 1919, a partir de um eclipse solar, que uma equipe de astrônomos britânicos confirmou a mãe de todas as ideias, a da relatividade geral — um outro grupo de investigação fora deslocado para a Ilha do Príncipe, na África. “A questão que minha mente formulou foi respondida pelo radiante céu do Brasil”, disse ao ser informado dos bons resultados das experiências.
Foi nesse tom de júbilo, portanto, que Einstein desembarcou no Rio de Janeiro. De cara, espantou-se com a natureza, como tantos europeus. No diário, anotou em 4 de maio, com letra cuidadosa: “Chegada ao Rio ao pôr do sol, com clima esplêndido. Em primeiro plano, ilhas de granito de formato fantástico. A umidade produz um efeito misterioso”. Foi levado ao Museu Nacional, diante do meteorito Bendegó, encontrado em 1784 no sertão da Bahia. Celebrado como se fosse um chefe de Estado, era um gênio a desfilar incômodo com os trópicos.
Embora mesmerizado pelo cenário natural da cidade emoldurada pelo Pão de Açúcar (o Cristo Redentor ainda não existia) e pela “miscelânea de povos nas ruas”, que classificou como “deliciosa”, Einstein logo tratou de escorregar para reflexões um tanto absurdas, elitistas e racistas. Era o criador de um universo, improvável e imponderável, a tratar do pequeno mundo aqui embaixo, com todas as suas mazelas e incorreções. “Aqui sou uma espécie de elefante branco para eles, e eles são macacos para mim”, rabiscou. Se os argentinos são “indizivelmente estúpidos”, atribuiu uma suposta indolência dos brasileiros ao clima. “Todos me dão a impressão de terem sido amolecidos pelos trópicos”, concluiu, como quem punha a língua de fora.
Não é o caso de absolvê-lo das estultices, nem mesmo de justificá-las porque era ruim assim naquele tempo. Elas assustam, lidas hoje, ao revelar o sujeito de carne e osso por trás do totem inigualável. Mas há, sim, uma pequena ponderação: as anotações não nasceram para exposição pública. Serviam a interesses pessoais, de quem descreve o que vê, e como ponte para a mulher e a enteada, Margot, na Alemanha. “Temos certeza de que não dedicou o diário à posteridade ou para publicação”, afirma Rosenkranz. O fascinante, na cuidadosa compilação, é poder entrar na mente de quem nos ajudou a pensar de onde viemos e, quiçá, para onde vamos.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890