Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Reconstrução do Museu Nacional avança, mas jornada ainda é longa

Destruído por um incêndio em 2018, prédio histórico segue em busca de recompor um acervo que foi o maior da América Latina

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 21 jan 2023, 08h00

A primeira semana de setembro de 2018 foi um tempo de más notícias — um período em que o Brasil mergulhou nas profundezas do descaso e da guerra política. Logo no dia 2, um incêndio de grandes proporções consumiu o Museu Nacional, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, envolvendo em chamas o que era o maior acervo de história de ciência natural da América Latina — cerca de 85% dos 20 milhões de itens ali acumulados desde 1892 foram destruídos. Quatro dias depois, o então deputado federal Jair Bolsonaro, em campanha eleitoral, sofreu um atentado a faca durante um comício em Juiz de Fora, em Minas Gerais. O resto é história. O ataque ao candidato ocupou as manchetes e engoliu o drama cultural e científico. O presente embaçara a memória de um país tão desmemoriado.

LEMBRANÇA - Setor de antropologia: armários retorcidos serão preservados -
LEMBRANÇA - Setor de antropologia: armários retorcidos serão preservados – (Alex Ferro/.)

A restauração do Palácio de São Cristóvão, que foi o lar das famílias real portuguesa e imperial brasileira até 1889, avança, mas ainda há uma longa jornada até a entrega completa das obras, postergada para 2027 em função da conjuntura econômica e das dificuldades na obtenção de recursos. VEJA foi convidada a percorrer o interior dos quatro blocos do complexo principal para ver de perto os danos, e sobretudo os detalhes de recuperação de partes do acervo. A reportagem também visitou o Horto Botânico, que abriga a Biblioteca Central do Museu Nacional, gerida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, além do canteiro onde está sendo construído o novo Campus de Ensino e Pesquisa, uma área do tamanho de quatro campos de futebol onde ficarão a reserva técnica, laboratórios e um caprichado centro para visitação.

Em setembro do ano passado, quando a tragédia completou quatro anos redondos, o trabalho fechou seu primeiro grande ciclo. A fachada e o jardim frontal, reconstruídos, foram expostos ao público em suas cores originais, amarelo ocre nas paredes e verde nas portas — com direito a recuperação de trinta esculturas de mármore italiano de Carrara que estavam na cobertura. As imagens autênticas passarão a integrar o acervo e poderão ser apreciadas de perto pelo público em exposições permanentes. Em seu lugar, no alto dos pórticos, estão instaladas réplicas fabricadas com tecnologia de impressão em 3D. “Nem a família imperial viu essa fachada tão bonita”, diz Alexander Kellner, diretor do museu e cicerone da visita. “Dom Pedro II, é notório, não era a pessoa que mais gastava nessas iniciativas de manutenção.”

TESOURO - Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil: parcialmente recuperado -
TESOURO - Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil: parcialmente recuperado – (Ismar Ingber/.)

O canteiro de obras fervilha no verão carioca. A ideia é entregar até fevereiro os telhados e a fachada do bloco histórico, à direita de quem encara o palácio de frente, setor que abrigava tesouros do período imperial. É por ali que os operários entram. O primeiro impacto é a asustadora quantidade de entulho que cobre os caminhos. Um olhar mais atento ao redor, contudo, revela as terríveis cicatrizes do fogo, que teria começado em um aparelho de ar-condicionado em razão de falha elétrica. Há sobrearcos das janelas enegrecidos pelas labaredas, pisos de cerâmica estourados e partidos, vigas de sustentação retorcidas pelo calor intenso.

O local onde ficava o setor de geologia ainda guarda os armários que abrigavam o respeitado acervo. Por ser basicamente formado por rochas e minerais, evidentemente mais resistentes, muito do que ocupava o agora emaranhado de gavetas e fileiras retorcidas de estantes metálicas foi resgatado. No setor de antropologia, onde ficavam os crânios e restos de povos originários que habitaram o país no passado, uma parte preciosa da coleção depositada na instituição não teve sorte — e queimou. Esse espaço, em especial, será preservado, estabilizado e envolto em vitrines de vidro como reminiscência, como um grito de basta ao desprezo, daquela fatídica noite que levou embora parte fundamental de uma instituição científica bicentenária.

RESGATE - O meteorito Bendegó (acima) e parte da coleção de Pompeia da imperatriz Teresa Cristina (abaixo): algumas relíquias sobreviveram às chamas -
RESGATE - O meteorito Bendegó (acima) e parte da coleção de Pompeia da imperatriz Teresa Cristina (abaixo): algumas relíquias sobreviveram às chamas – (Fotos Alex Ferro; Diogo Vasconcellos/Museu Nacional/UFRJ/.)

Próximo às salas de antropologia estava um dos símbolos da coleção, os restos de Luzia, o fóssil humano mais antigo da América Latina. O esqueleto de mais de 10 000 anos, descoberto nos anos 1970, na região metropolitana de Belo Horizonte, foi inicialmente dado como perdido e depois parcialmente recuperado. A coleção antropológica da imperatriz Teresa Cristina, que inclui afrescos de Herculano de Pompeia, também foi salva. Outra relíquia, o meteorito Bendegó, encontrado em 1784 no sertão da Bahia, região da atual cidade de Monte Santo, passou incólume. Com mais de 5 toneladas, o maior já achado em solo brasileiro, foi levado ao acervo por dom Pedro II. Ainda há, porém, muito a ser feito. Uma campanha específica para esse fim — com o sugestivo nome de #recompõe — continua a buscar novas peças para a coleção.

Continua após a publicidade
FAGULHA - O teatro onde o fogo teria começado: triste memorial da tragédia -
FAGULHA - O teatro onde o fogo teria começado: triste memorial da tragédia – (Alex Ferro/.)

O orçamento do projeto de reconstrução do museu é de 380,5 milhões de reais, com 64% do valor já captado. Esse montante será atualizado assim que o projeto da parte interna do palácio for finalizado, o que inclui um memorial no antigo teatro, onde os laudos técnicos indicam ter começado o incêndio. O planejamento para 2023 prevê ainda a entrega da obra de reforma e a ampliação da Biblioteca Central. “Quando o conjunto estiver pronto, transformaremos o palácio, novamente, numa área expositiva mais ampla, com segurança para o acervo”, diz o diretor Kellner. “Mas precisamos de recursos e, confesso, estou um pouco ansioso por ainda não ter ouvido a palavra museu no governo que se inicia.” Lugares de memória, os museus mantêm vivo o passado para ajudar a pensar o presente e definir o futuro. É fundamental preser­vá-los a qualquer custo, como retrato de um país que não pode ser esquecido.

Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.