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‘Pessoas que tratam ciência como verdade definitiva não são cientistas’

Sabine Hossenfelder, autora de ‘A ciência tem todas as respostas?’, falou a VEJA sobre o processo de escrita, pseudociências e a ciência contemporânea

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 out 2023, 16h41 - Publicado em 16 out 2023, 16h34
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  • Muitas pessoas olham para a ciência como a resposta final para todas as perguntas, mas isso nem sempre é verdade. No recém-lançado “A ciência tem todas as respostas?”, Sabine Hossenfelder se debruça sobre questões importantes da humanidade para tentar responder essa pergunta em definitivo. 

    O passado ainda existe? O universo pode pensar? Há cópias nossas por aí? A partir de questionamentos como esses, a autora ensina o leitor sobre o método científico, mostra como a ciência feita nos laboratórios pode responder questões existenciais e desafia as fronteiras do conhecimento humano. 

    Alemã, Hossenfelder é física e divulgadora científica. Em entrevista a VEJA, ela falou sobre o processo de escrita, pseudociências, alegrias e desafios da ciência contemporânea. 

    Aqui no Brasil seu livro foi chamado “A ciência tem todas as respostas?”. Isso é interessante porque algumas das questões que você aborda são tão existenciais e na fronteira do conhecimento que podem ser confundidas com perguntas religiosas. Você acha que há algo que a ciência não deve responder? Eu acho que existem coisas que a ciência não consegue responder. Uma questão que a ciência não consegue responder é “para começar, porque é que a ciência funciona?”. Sabemos que funciona. Nós olhamos para evidências, tentamos descobrir as leis da natureza e depois aplicamos isso para construir casas e aviões, por exemplo. Mas como isso funciona? a ciência não consegue responder a isso. Não podemos usar o método científico para explicar o método científico. Quando se trata do início do universo, acho que estamos nos deparando com um problema semelhante, onde a ciência enfrenta um limite fundamental. Qualquer coisa que venha antes disso é narrativa e você pode acreditar ou não.

    Acredito que durante a sua formação em física teórica você foi treinada para fazer perguntas muito específicas com respostas numéricas muito difíceis de entender. Por outro lado, você lida em seu livro com questões bastante existenciais. Por que você acha que é importante fazer essas perguntas e como você chegou a elas? A maioria das perguntas de que falo são feitas por pessoas de todo o mundo, não se trata especificamente de física. O que surpreende é que a física tem algo a dizer sobre elas. Como o universo começou,por exemplo. Estamos acostumados a pensar sobre isso. Mas também há aquelas coisas que nos dizem o quanto aprendemos sobre as leis da natureza. Ao descobrir como essas partículas funcionam, também aprendemos algo sobre como nós funcionamos. 

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    Algo que chama a atenção no livro é que você não se importa em deixar claro aos seus leitores que a maioria das respostas pode mudar no futuro, o que contrasta em absoluto com alguns pesquisadores que tratam a ciência como resposta final para tido. Como você vê isso? Qual é a importância das incertezas para a ciência? Excelente pergunta. Acho que as pessoas que tratam ciência como verdade definitiva, em sua maioria, não são cientistas. Se você trabalha com ciência, está muito acostumado com as coisas sendo questionadas e mudadas o tempo todo. Há algumas coisas que funcionam e não vão mudar. Por exemplo, temos muitas evidências de que a teoria da gravidade é correta para uma grande área e escala. Isso não vai mudar. Mas isso pode mudar em escalas que não testamos. Pode haver modificações. É por isso que tenho este preâmbulo que diz “pelo que sabemos atualmente, o espaço-tempo funciona desta ou daquela forma, mas pode mudar no futuro”. Sempre existe essa fronteira do conhecimento onde tudo pode mudar. Talvez daqui a 20 anos alguém escreva um livro e explique por que tudo o que eu disse é besteira.

    Costumamos mencionar a oposição entre religião e ciência, mas há muitas outras áreas como a astrologia, a homeopatia, alguns até mencionariam a psicanálise, que normalmente são encaradas como inimigas e que podem se beneficiar dessas incertezas. Como a ciência deveria lidar com isso? As áreas que você acabou de mencionar são as chamadas pseudociências. Não tenho certeza sobre psicoterapia, existem alguns tipos que apresentam evidências a seu favor. De qualquer forma, a razão pela qual são chamadas de pseudociência é que fingem ser ciência. As pessoas que acreditam nisso ou trabalham com isso realmente acreditam, às vezes porque tem essa aura de ciência. Acho que o que está errado é que as pessoas geralmente não entendem como a ciência funciona. A ciência tem muito o que explicar, mas a comunicação científica tem feito muitos progressos, especialmente depois da pandemia de covid-19. Estamos progredindo lentamente.

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    CAPA – A ciência tem todas as respostas? (Editora Contexto/Divulgação)

    Seu livro tem um tom muito otimista. Isso foi proposital? Por que você escolheu passar uma mensagem tão positiva? Existem duas razões. Em primeiro lugar é porque acredito que essas questões são super fascinantes. Há muito o que você pode fazer com a matemática, ela tem essa estrutura rigorosa que torna muito difícil mentir para si mesmo. Se você usa matemática, ela restringe muito sua capacidade de inventar coisas. A física usa essa linguagem muito rígida. Estou entusiasmado com o potencial da física para analisar todas essas questões – como funciona o universo, como nós funcionamos. Temos muitas respostas e isso tudo surgiu em um período muito curto de tempo. A indústria moderna da ciência é bastante jovem e ainda assim encontramos muitas coisas. A segunda razão é porque meu primeiro livro foi meio deprimente, era basicamente uma crítica sobre todas as coisas que estão dando errado nos fundamentos da física. Eu queria compensar isso, nem tudo está dando errado.

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    E como foi o processo de escrita desse livro? Existe alguma questão que mais te surpreendeu? O capítulo que mais me surpreendeu foi aquele sobre se o universo pode pensar. Não do jeito que pensei. Achei que acabaria dizendo que não, o universo não pode pensar e é por isso. O que descobri foi que não podemos chegar a essa conclusão dessa forma.

    Há algo que você gostaria de abordar no livro, mas não conseguiu por algum motivo? Eu gostaria de escrever mais sobre inteligência artificial, mas é sempre assim que acontece com os livros, chega um ponto em que você tem que parar de escrever. Eu certamente falaria sobre o debate atual em torno das IAs. Há muitas coisas nos bastidores sobre as quais não estamos falando. Podemos ter debates intermináveis sobre como isso afetará artistas, escritores ou nossas vidas pessoais. Mas acho que uma base legal, definindo os termos, será o mais importante para tudo o que pode vir. Isso está fazendo falta no momento, mas vocês sabem como acontece o desenvolvimento de políticas: os governos só agem quando é absolutamente necessário. Está indo bem, mas certamente poderia ir mais rápido. Há muita IA sendo usada na psicoterapia, por exemplo, e é previsível que algo ruim vai acontecer porque não temos regras para restringir esse tipo de coisa. É por isso que estou um pouco preocupada. Só espero que isso não afete o lado humano das pessoas.

    Agora saindo um pouco do processo de escrita. os prêmios Nobel acabaram de ser anunciados. Você ficou animada com os vencedores? Sim, estou sempre animada com o Nobel. É o único dia no ano em que todo mundo fala sobre física. Gostaria que as pessoas falassem mais sobre física. O prêmio deste ano foi para a física de attossegundos. Isso me surpreendeu porque eu esperava que o prêmio fosse para alguns tópicos mais antigos, como computação quântica ou metamateriais. Eles escolheram temas bastante recentes e que já estão em aplicação. Acho que é bom porque mostra que há coisas novas acontecendo na ciência.

    Vivemos um momento de profunda negação científica. Existe uma maneira de sair disso? Primeiramente, gostaria de dizer que a negação da ciência não é um problema generalizado. Na verdade, depende muito do país. Há muitas pessoas nos EUA e em outros países que negam alguns aspectos da ciência e falam muito alto, é por isso que se ouve tanto falar deles, mas penso que a grande maioria das pessoas respeita a ciência e se olharmos para as pesquisas, muitas pessoas ainda confiam na ciência. Ainda assim, existem alguns problemas. O maior deles é, em certos países, no nível educacional. As pessoas não têm conhecimento para discutir sobre ciência. Se você pensar nas pessoas que acreditam que ser vacinado vai te deixar magnético, por exemplo, você percebe que elas devem ter perdido a maior parte do ensino médio. A comunicação científica não vai conseguir resolver isso. Há algo gravemente errado no sistema educacional se as pessoas caem nesse tipo de bobagem. Acontece também que bons comunicadores científicos são raros e penso que muitos países não apoiam bem a comunicação científica, e isso é um problema. Certamente mais deveria ser feito.

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