A origem da vida é um tema que, evidentemente, desperta curiosidade há milênios. Os recursos usados para esclarecer o assunto, contudo, mudaram ao longo dos anos. Muitas civilizações passadas, a exemplo da egípcia (3150 – 332 a.C.), usavam ações divinas para explicar o surgimento dos seres vivos. Algo, claro, que permanece até hoje.
Alguns cidadãos da Grécia Antiga, por outro lado, começaram a optar por teorias mais científicas. Hipócrates (V – IV a.C.), o pai da medicina, acreditava que os quatros elementos, reproduzidos no corpo humano, eram responsáveis pela faísca da vida. Já Demócrito, seu contemporâneo filósofo, via na junção de átomos a explicação para o fenômeno.
Desde então, há séculos que a humanidade usa sobretudo a ciência como ferramenta para tentar compreender suas origens. Dois estudos publicados na semana passada forneceram novas evidências que podem nos ajudar nessa longa caminhada em direção à fórmula da vida complexa na Terra. Demos mais passos em direção a uma solução.
A primeira pesquisa, veiculada no dia 9 no periódico científico Nature, foi fruto do trabalho de biólogos japoneses de diversos institutos, como a Agência para Ciência e Tecnologia da Terra Marinha. Pela primeira vez, cientistas conseguiram capturar e desenvolver em laboratório um micróbio semelhante àquele que pode ter dado início à vida complexa na Terra.
Trata-se de uma espécie antiga de arqueas, microorganismos unicelulares muito parecidos com as bactérias, com um tipo de célula mais simples do que o de animais e plantas. Habitantes do mar profundo, esses seres são muito difíceis de se manter em um ambiente controlado, o que exigiu aos pesquisadores doze anos de esforços para cultivá-los apropriadamente.
A importância dessas arqueas é gigantesca para entender a origem da vida. Em seu material genético, foram encontrados, além dos genes frequentemente presentes em micróbios, marcadores genéticos típicos de eucariontes (células como as nossas, que possuem núcleo e outras estruturas mais complexas). Essa mistura de informações levou os cientistas a acreditarem que estavam em frente a um ser que pode ter servido de ponte entre as células simples e as mais desenvolvidas. Por causa desse genoma enganador que junta características antes encontradas apenas separadamente, as arqueas receberam o nome de Lokiarchaea — uma homenagem ao deus da travessura nórdico, Loki.
A hipótese dos biólogos é que, há cerca de 2 bilhões de anos, micróbios como esses tenham englobado bactérias, iniciando uma relação que teria sido benéfica para ambos. Eventualmente, depois de diversos processos de mutação e da ação da seleção natural, essas bactérias teriam se transformado em mitocôndrias. Essa estrutura é essencial à existência de eucariontes, pois permite que as células realizem respiração celular e obtenham muito mais energia do que suas contrapartes bacterianas. Teria sido o passo inicial em direção à vida complexa na Terra.
O outro estudo, publicado no dia 12 no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, partiu de uma iniciativa da Universidade de Washington (EUA). A meta dos pesquisadores era compreender um enigma que incomoda a comunidade científica há muitos anos e cuja resolução pode ser determinante no entendimento da formação das primeiras células do planeta.
A questão é a seguinte: estima-se que essas células tenham sido formadas em uma espécie de sopa de compostos complexos de carbono há aproximadamente 4 bilhões de anos. Para que seu metabolismo funcionasse, elas precisariam absorver alguns dos íons (átomos eletricamente carregados) presentes nessa sopa, a exemplo do magnésio. No entanto, a carga desses átomos desorganizariam a estrutura da membrana celular, ocasionando na morte celular. Como, então, esse processo de absorção de íons teria ocorrido?
Para resolver a charada, os cientistas decidiram usar em seus experimentos apenas moléculas que estavam presentes na Terra há 4 bilhões de anos. Dessa forma, conseguiriam reproduzir a situação vivida por esses seres pioneiros com considerável exatidão. Em uma tentativa de replicar a constituição das células, foram usados recipientes microscópicos cheios de fluido e envoltos em membranas feitas de ácido graxos (como teriam sido as estruturas equivalentes daqueles seres primordiais).
Assim, descobriram que, quando essas células absorvem íons, os aminoácidos (substâncias orgânicas formadoras das proteínas presentes nas células) assumem o papel de estabilizar as membranas celulares, impedindo que elas se rompam. Logo, a célula teria acesso ao íon exigido por seu metabolismo sem correr o risco de ser desmanchada pela carga elétrica do átomo.
Além disso, foi descoberto que moléculas de RNA, ácido que comanda a produção de proteínas e tem um papel importante na codificação genética, também colaboram na solidificação das membranas em situações adversas, fortificando-as. A importância do estudo está na consolidação da hipótese de que as membranas podem ter sido o palco onde compostos essenciais à vida — como íons, RNA e aminoácidos — teriam coexistido pela primeira vez.
As duas pesquisas, apesar de interessantes, não possuem caráter conclusivo. Ainda restam muitas perguntas a serem respondidas no vasto percurso rumo à compreensão das origens da vida na Terra. Ambos os trabalhos, no entanto, apontam que há, sim, uma resposta unívoca para esse que é um dos enigmas mais antigos da humanidade. E, ao contrário do que grande parte da população mundial acreditava há alguns séculos, fica cada vez mais claro que a solução está na química, na biologia e no raciocínio científico.