Os resultados da primeira safra do projeto que une cerveja e ciência
Cervejarias locais de todo o país se uniram para incorporar conceito de terroir na bebida
Há pouco mais de um ano, 53 cervejarias locais brasileiras se uniram em um plano ousado: produzir juntas uma cerveja selvagem que utilizaria como base leveduras encontradas na mandioca. Chamado de Manipueira, nome dado ao líquido extraído da raiz nativa, o projeto acaba de gerar sua primeira safra e surpreendeu pelo sabor e pelo potencial científico.
A ideia principal era incorporar o terroir ao mundo das cervejas brasileiras. Comum entre os produtores e apreciadores de vinhos, o conceito se refere à capacidade do solo, do clima, da altitude e dos microrganismos de um local de interferirem na qualidade e nas características sensoriais de um alimento. “Somados, isso tudo gera um produto único”, afirma a pesquisadora envolvida no Manipueira, Carola Carvalho. “A gente pode começar a fazer cerveja com a identidade brasileira.”
Identidade foi uma palavra chave. Todas as cervejarias começaram a produção ao mesmo tempo e utilizaram a mesma receita. O malte e o lúpulo tinham características padronizadas e deveriam ser brasileiros, mas cada produtor teria a responsabilidade de utilizar água e manipueira locais. A temperatura também deveria ser ambiente, sem nenhum controle adicional. Depois disso, a bebida fermentou por quase um ano ininterrupto em barris de madeira.
O longo tempo de espera, incomum nas cervejarias mais tradicionais, pode espantar, mas é essencial e tem uma explicação prática. No início do processo, muitos microrganismos diferentes, provenientes da água, do ambiente e da manipueira, começam a se proliferar. Eles contribuem com o sabor e com a textura, mas podem ser patogênicos e, por isso, não devem ser consumidos. Com o passar dos meses, contudo, eles desaparecem e predominam as leveduras fermentadoras e inofensivas, como a famosa Saccharomyces cerevisae. Além disso, o tempo é importante para que a madeira e as condições locais incorporem suas características à bebida.
O resultado surpreendeu até quem já está acostumado com os produtos artesanais. “Nós esperávamos uma cerveja selvagem e ácida, mas muitas delas foram cervejas elegantes e diferentes”, diz Carola. Apesar da característica comum, cada uma das cervejas tinha uma particularidade que refletia, como esperado, a cultura e o ambiente locais. A explicação para isso provavelmente está nas leveduras.
Ao longo do projeto, pesquisadores fizeram coletas para analisar o perfil dos microrganismos. O que eles viram foi que em algumas regiões, como Sergipe, crescia uma variedade muito maior de leveduras do que outras, como São Paulo e Santa Catarina. Eles também observaram que várias espécies de Saccharomyces surgiam em diferentes momentos e participaram da fermentação – uma delas, inclusive, presente em grande quantidade e chamada de Saccharomyces mikatae, é comum na produção de bebidas no Japão, mas nunca havia sido descrita no Brasil.
Esses resultados serão apresentados ainda em outubro no Congresso Brasileiro de Microbiologia, mas os cientistas envolvidos no projeto continuarão fazendo investigações para produzir mais resultados científicos. No futuro, eles pretendem construir um banco de leveduras brasileiras.
O Projeto Manipueira nasceu de uma parceria entre a cervejaria Cozalinda, de Florianópolis (SC), com a Zalaz, de Paraisópolis (MG) e contou com a Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) para recrutar outros participantes. A produção da nova safra já teve início, contará com a participação de mais cervejarias e deve se tornar um programa constante de colaboração entre ciência e produção de cervejas selvagens.