Para o matemático francês Étienne Ghys, de 63 anos, os cristais de gelo estão entre os objetos mais belos do mundo. A figura de seis pontas, que parece tão regular em suas aparições em desenhos animados e enfeites de Natal, está longe disso: nunca foram encontrados dois cristais iguais na natureza. Foi sobre esta forma que mobiliza sua curiosidade científica que Ghys falou em sua palestra no Congresso Internacional de Matemáticos, no Rio de Janeiro, dia 30, quando foi aplaudido por milhares de pares. Nascido em Lille, no norte da França, ele veio ao Brasil pela primeira vez em 1978, por meio de um acordo de cooperação científica – uma alternativa na França ao serviço militar, ao qual é “profundamente avesso”. Desde então, voltou ao país diversas vezes, para trabalhar em projetos no Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o Impa. Diretor da École Normale Superieure, em Lyon, na França, Ghys é também vencedor do prêmio de Disseminação do Conhecimento Matemático do Instituto Clay, nos Estados Unidos, um reconhecimento por seus esforços para tornar a matéria-terror dos estudantes em um assunto pop. “A matemática serve para expressar coisas bonitas”, diz ele, que usa os números para falar de moda, natureza e até bola de futebol. Da sala que atualmente ocupa no Impa, ele falou a VEJA.
O que há de tão especial no Brasil que o faz ir e vir? A matemática francesa é muito rígida. Lembre-se que Descartes, o criador do método científico, era francês. Nossa maneira de pensar sempre foi muito dura, muito cheia de regras. Não sei se é porque este é o jeito tropical de fazer as coisas, mas no Brasil eu descobri que dá para estudar matemática de uma maneira mais amigável, com menos fórmulas, menos normas — especialmente na área em que me especializei, os sistemas dinâmicos. O criador deste campo, Henri Poincaré, era um homem fantástico. A ideia dele era justamente fazer uma matemática qualitativa, com menos contas, só observando as figuras e os desenhos e pondo a imaginação para funcionar. Sistemas dinâmicos formam uma área bastante desenvolvida no Brasil. Encontrei no país, portanto, um cenário ideal para pesquisar.
O seu trabalho tem aplicação prática? Eu sou fã do lado puro da matemática. Não é que eu não goste de aplicações, mas você não faria a mesma pergunta a um pintor, certo? Não perguntaria a ele para que serve a pintura. Para mim, a matemática é muito parecida com arte moderna. Não é para todo mundo. Você precisa mergulhar no processo intelectual do artista. Se você chegar a um museu de arte moderna sem estudar, não vai entender nada. O mesmo acontece com a matemática. Na minha lousa, por exemplo, há o desenho de uma curva descoberta por um físico alemão chamada “quártica” de Klein, em tradução livre. Se você tiver uma semana, eu posso explicar para você. Garanto que vai achar um objeto lindíssimo!
Essa visão da matemática não se parece em nada com a que se aprende na escola… Não é? Essa decoreba de fórmulas do Ensino Médio é uma vergonha. Uma boa parte da matemática não depende disso. Inclusive porque as contas complicadas não explicam tudo. Poincaré, por exemplo, entendeu que a melhor maneira de estudar o movimento da lua e das estrelas é olhando. Imagine se as aulas de matemática trouxessem curiosidades sobre os flocos de neve ou bolas de futebol? Quase ninguém sabe que a Brazuca, a bola da Copa de 2014, é um cubo.
Um cubo? Sim. Na primeira vez que vi a bola pela televisão, disse a mesma coisa para a minha mulher, que achou que eu estava louco (risos). Explico: a superfície da Brazuca é feita de seis pedaços idênticos, extraídos de uma superfície plana. Só que invés de serem quadrados, são curvas complicadas – e muito bonitas – cujos vértices se conectam exatamente como em um cubo. É a mesma estrutura.
Atualmente, a França é a campeã mundial da matemática. Temos chance de roubar o título? Achei que você estivesse falando sobre futebol (risos). Brincadeiras à parte, talvez você deva me fazer essa pergunta daqui a uns 200 anos. A história matemática na França é muito mais antiga que no Brasil. Já na época da Revolução Francesa, nosso pessoal entendeu muito bem que o país precisava das ciências. O próprio Napoleão – de quem eu não sou muito fã – era consciente da importância da matemática para a nação e criou instituições científicas de peso, como a Escola Politécnica. A história de vocês começou nos anos 1960. Ainda ontem!
E está indo bem? No que diz respeito à pesquisa, muito. Pouquíssimos países fora da Europa e dos Estados Unidos tem o poder de sediar um Congresso com o porte deste que está acontecendo. É um sinal claro de que o Brasil está se destacando. Quando a matemática começou aqui, os fundadores do Impa fizeram escolhas muito precisas: selecionaram uma área específica do conhecimento e se tornaram os melhores do mundo. Foi extremamente inteligente.
O que o transformou em um divulgador da matemática? Quando menino, eu era muito tranquilo e tímido. A matemática era minha maneira de ficar quietinho no meu mundo. Pouco a pouco, descobri o prazer de dividir conhecimento, de modo que, hoje, conversar sobre matemática com meus alunos é minha maior realização. Esse negócio de falar da beleza da formas é bem interessante. Acredita que chegamos a discutir de que cor imaginamos determinadas figuras? A quártica de Klein, por exemplo, para mim, é azul.