Em 2013, o Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido deu início a um projeto ambicioso: em benefício da medicina de precisão, eles sequenciaram 100 mil genomas gratuitamente. Dez anos depois, o projeto já começa a dar resultados e inspira empreendimentos semelhantes ao redor do mudo, mas será que finalmente chegamos ao momento em que todos devem ter o próprio genoma na palma das mãos?
“Ainda não chegamos lá”, afirma, categoricamente, a Baronesa Nicola Blackwood. Ex-ministra de inovação, por dois mandatos consecutivos, hoje ela é CEO da Genome England, empresa do NHS que realiza os sequenciamentos. Em passagem pelo Brasil, para palestrar no ciclo do Future of Medicine, ela concedeu entrevista a VEJA para falar sobre o potencial, os desafios e o futuro da genômica.
Existem diversos empecilhos que impedem o uso disseminado, mas um deles se impõe. “Temos um grande problema com a diversidade de dados”, ela diz. Historicamente, os experimentos na área de genética foram feitos com populações hegemônicas, geralmente brancas e de ancestralidade europeia. Assim, estudos com populações miscigenadas, indígenas, afrodescendentes e asiáticas são urgentes para que se compreenda se o conhecimento científico construído até aqui pode ser aplicado e esses grupos e que particularidades eles carregam. “Existe um imperativo científico, mas também existe um imperativo moral para resolver essa questão”, afirma Blackwood.
Dessa maneira, hoje, o sequenciamento completo do genoma só se justifica nos casos de cânceres e doenças raras. Esses foram os pacientes elegíveis para o projeto britânico. Nesses casos os benefícios são claros – além de possibilitar a compreensão da origem de tais condições, o sequenciamento também pode ajudar no tratamento e na descoberta de novas enfermidades.
Para Blackwood essa é uma questão quase pessoal. Ela demorou três décadas para ser diagnosticada com a Síndrome de Ehlers-Danlos, uma doença hereditária e incurável que afeta pele, articulações e parede dos vasos sanguíneos. “Foram muitas consultas médicas, exames desnecessários e tratamentos inadequados”, ela diz. “Cheguei ao ponto em que pensei que teria que desistir do meu emprego até que, por acaso, um neurologista me diagnosticou.”
Na verdade, esse é um problema recorrente. Cerca de 75% de todos os diagnósticos de doenças raras são feitos em crianças e 30% delas morrem antes de completarem cinco anos de idade, muitas vezes sem um diagnóstico definitivo. “Nós conseguimos suporte político concebendo um projeto que construiria saber científico, mas que também estabeleceria uma infraestrutura que beneficiaria pacientes, médicos e o sistema de saúde. Fizemos um planejamento que economizou e não que custou dinheiro”, afirma Blackwood.
Isso, no entanto, não foi fácil de conseguir. Após a aprovação do projeto, eles demoraram anos para recrutar todos os pacientes e, depois disso, colocar os experimentos em prática foi um desafio. Cada sequenciamento completo exige um espaço de virtual que equivale, mais ou menos, ao disponível em um computador pessoal. Além da quantidade extremamente grande de armazenamento necessário, eles também tiveram que lidar com a escassez de profissionais qualificados, como geneticistas, conselheiros genéticos e bioinformátas.
Só com isso já é possível compreender o porquê de não sequenciar todo mundo, mas existe ainda mais um motivo. Além do dilema ético de informar pessoas sobre doenças que elas podem desenvolver e que não têm tratamento, faltam evidências de que justifiquem o benefício para indivíduos saudáveis. “Parte disso é sobre ética, mas a outra parte é sobre aspectos práticos”, afirma a Baronesa. “Temos um montante limitado de financiamento público, por isso não o gastamos sem ter provas de que sabemos o que fazer com essa informação.”
É seguro dizer, no entanto, que não estamos tão longe dessa realidade. Uma das vertentes do projeto deverá sequenciar pacientes saudáveis para investigar os chamados escores poligênicos. Estudos mostram que através de alguns genes, é possível saber que probabilidade um indivíduo tem de desenvolver condições como diabetes, demência ou pressão alta. Isso já se mostrou útil em estudos clínicos, mas ainda não foi aplicado em uma grande população.
“A ideia é que, a partir desses testes, você possa direcionar o indivíduo para protocolos específicos de triagem ou teste, para que o sistema de saúde possa gerenciá-los com base nos riscos individuais. Um será rastreado apenas para demência e outro apenas para câncer, com base no risco individual. Será mais fácil e menos caro.”, explica Nicola.
E o Brasil?
A popularização de projetos como esse é benéfica, porque além de aumentar os benefícios para os pacientes, deixar o conhecimento científico mais robusto e dar suporte a medicina preventiva, os testes ficam progressivamente mais baratos à medida que mais pessoas começam a acessá-los.
A Baronesa sugere que uma possibilidade para o Brasil seria começar com um grupo menor de pessoas e, a partir disso, gerar conhecimento e evidências que justifiquem a sua expansão. Ela destaca, no entanto, que um empreendimento como esse só é possível com parcerias sólidas entre o sistema de saúde e grupos científicos, médicos, políticos e a indústria privada.
A participação do Brasil enfrentaria, sem dúvidas, a dificuldade de lidar com dados obtidos de maneira desigual, mas, ao mesmo tempo, ajudaria a resolver essa questão que afeta toda a ciência e diminui a confiabilidade dos estudos.