Dado como perdido, filme de 1918 sobre o Amazonas é encontrado em Praga
Obra ilumina o trabalho do diretor, Silvino Santos, e os primórdios do ambientalismo
Foi uma bonita aventura. Um dos primeiros registros em filme da Bacia Amazônica ficou perdido por quase um século até ser reencontrado recentemente na Cinemateca de Praga, na República Checa. Rodado no fim dos anos 1910 pelo cineasta luso-brasileiro Silvino Santos (1886-1970), Amazonas, o Maior Rio do Mundo, de 1918, mostra em pouco menos de uma hora as riquezas e as populações originárias de uma das regiões mais ricas e biodiversas do planeta. Levado por um preposto dos produtores para ser distribuído na Europa, teve as cartelas legendadas em inglês e outros idiomas. Circulou por vários países europeus durante pelo menos dez anos. Um certo Propércio de Mello Saraiva, o representante encarregado da venda internacional, assumiu a autoria no lugar de Santos e até escreveu relatos sobre a filmagem publicados em revistas locais de relativa importância. Malandro, embebido de desfaçatez, ficou com o dinheiro pago pela renomada empresa francesa Gaumont pelos direitos de distribuição.
Entre dezembro de 1921, quando foi lançado, e até pelo menos 1931, Amazonas, o Maior Rio do Mundo foi visto e celebrado, creditado a quem não tinha os direitos da obra. Depois, sumiu. Em fevereiro deste ano, contudo, o crítico americano Jay Weissberg recebeu dos técnicos da Cinemateca de Praga um link com a cópia digital de um longa, catalogado equivocadamente como uma produção de 1925, que trazia imagens belíssimas do rio nos territórios brasileiro e peruano. O olhar experiente de Weissberg, especialista em cinema mudo, identificou ali traços estéticos da direção de Silvino Santos. Ele entrou em contato com o professor Sávio Stocco, da Universidade Federal do Pará, especialista no trabalho do diretor radicado em Manaus no início do século XX. “Foi quando percebemos que se tratava do filme que era considerado perdido”, diz Stocco. Do ponto de vista artístico, mas também do zelo com a trajetória da mata original, pode ser considerado um extraordinário salto.
Para entender o que aconteceu, convém voltar um pouco no tempo. Em 1981, os técnicos que cuidavam do acervo da Cinemateca de Praga identificaram que uma das latas contendo uma cópia checa de um filme sobre a Amazônia estava em processo irreversível de degradação. Feitos de nitrato de celulose, esses filmes da era silenciosa são facilmente perecíveis e também correm o risco de sofrer autocombustão. Decidiram produzir um novo negativo em suporte estável, o acetato, e fazer cópias a partir dele. Mais recentemente, dentro do mesmo sistema de conservação, foi feita uma cópia digital, a mesma que chegaria às mãos dos especialistas. E deu-se, então, o eureca. “Graças a esse trabalho e ao intercâmbio entre as cinematecas, conseguimos identificar o filme e promover um novo ciclo de difusão”, afirma Gabriela Queiroz, diretora técnica da Cinemateca Brasileira.
A cópia redescoberta parece completa e corresponde aos textos sobre o filme. Mesmo sem ter passado ainda por um processo de restauração mais detalhado, começou a circular e reascendeu o interesse por aquele que é considerado um dos principais cineastas de não ficção do início do cinema brasileiro. A reestreia aconteceu recentemente, no Festival de Cinema Mudo de Pordenone, na Itália. Em seguida, foi projetado no Festival Internacional de Documentário de Jihlava, na República Checa. A primeira exibição pública no Brasil ocorreu na semana passada, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Estão programadas outras exibições, no Amazonas, Ceará e Rio de Janeiro. É a chance — rara — de ter os olhos nas origens do cinema, sem dúvida, mas também do ambientalismo das plagas do lado de cá. Trata-se, enfim, de uma recuperação necessária e celebrada. É uma vitória.
O diretor Silvino Santos registrou a frustração da perda em um caderno de memórias intitulado Romance de Minha Vida — por enquanto restrito a pesquisadores. Era o maior e mais ambicioso projeto da Amazônia CineFilm (1917-1920), produtora de Manaus dirigida pelo cineasta e pelo também diretor Luiz Thomaz Reis. Santos tentou fazer uma recriação do que considerava sua obra-prima em No Paiz das Amazonas (1921/1922), desenvolvendo temas do documentário anterior, como a extração de nozes e borracha, a caça ao peixe-boi e a pesca do pirarucu. A exemplo do pai que, embarcado em uma canoa, sai em busca do desconhecido em A Terceira Margem do Rio, conto de Guimarães Rosa, o cineasta nunca deixou de acreditar que seu trabalho estava “na órbita dos planetas”. Tê-lo de volta, conservado, é uma piscadela ao passado de olho no futuro.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868