Essa é, sim, uma história de superação, mas não precisava ser. Nossa personagem não passou fome, nem teve que dormir num carro ou na rua. Pelo contrário, ela teve aquilo que deveria ser direito de toda criança. Nascida no Rio de Janeiro, em uma família de classe média, Rosy Mary dos Santos Isaias sempre estudou em escola pública. Em casa ela tinha o apoio e o afeto dos pais – além de um bocado de livros à disposição. Sempre foi curiosa e, aos poucos, o caminho da ciência se fez natural. Se graduou em biologia, tornou-se mestra e doutora em botânica, e hoje é uma das pesquisadoras mais importantes no país em sua área de atuação.
Seria uma história comum se a doutora Rosy não fosse uma mulher negra. A primeira, aliás, a atingir o nível mais alto do programa de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Era uma vez uma menina que queria ser cientista. O mundo era contra. Ela ignorou”, Isaías diz, com orgulho, citando a frase dita a ela por uma amiga.
Rosy hoje é professora do departamento de botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Seu grupo de pesquisa estuda as galhas, pequenos tumores vegetais que surgem nas plantas em decorrência da interação com alguns insetos. Questionada sobre a importância da pesquisa básica, ela é categórica. “Sem plantas, não dá”, afirma. “Nós precisamos entender esses seres super complexos que nos trazem roupas, móveis, alimentos, oxigênio. É assim que a humanidade avança.”
Em entrevista a VEJA ela fala sobre a sua história com a ciência, a importância do reconhecimento da entidade científica e os benefícios de uma universidade mais diversa e plural.
Qual foi a sua reação quando soube que passou para o nível de pesquisadora 1A do CNPq? A rigor, essa promoção aconteceu em 1º de março, mas o resultado preliminar foi divulgado no final do ano. Eu estava trabalhando em uma revisão quando um grande amigo meu me mandou mensagem. “Parabéns, você foi a primeira mulher negra a alcançar o nível 1A do CNPq”. Foi um misto de felicidade, perplexidade e alegria. Colocado dessa maneira vem com um significado muito grande.
A senhora sempre quis ser professora universitária? Invariavelmente, os biólogos sempre escolhem ciências porque tiveram um professor que os inspiraram. Eu tive dois desses, a professora Cândida e o professor Mário. Eles eram muito sabidos e eu queria ser como eles. Aos poucos eu fui descobrindo como seguir esse caminho. Primeiro escolhi fazer graduação e uma amiga na me falou que eu seria uma boa monitora. Foi aí que comecei a me apaixonar pelo mundo das descobertas científicas. Fiz mestrado no Rio e depois fui pra USP para fazer o doutorado. Na minha origem, não tinha nem ideia de que essa possibilidade estaria ao meu alcance. A representatividade é importante por isso. Eu sinto que estou abrindo uma fila. Estou indo à frente para que outras meninas negras possam vir atrás de mim.
E você teve apoio nessas decisões? A minha mãe foi a primeira pessoa da família a fazer curso superior, e eu fui a primeira a chegar ao doutorado. Quando eu decidi fazer ciências biológicas, meu pai perguntou se eu não queria fazer medicina. Eu disse que queria trabalhar com vida e não com o sofrimento humano. Quando eu defendi o doutorado, ele ficou muito feliz. Os dois tinham um orgulho imenso. Estudar era nossa forma de subir alguns degraus na escala social e eles sempre entenderam isso.
O que te motivou para chegar até aqui? Quando nos trabalhamos numa universidade grande, do tamanho da UFMG, entramos num sistema que é como um rolo compressor. Quando cheguei aqui, em 1995, um colega de trabalho me disse que para ser respeitada, meu currículo deveria chegar na frente. Essa coisa ficou ecoando no meu imaginário. Sempre me considerei uma excelente professora, mas também precisava ter um ótimo histórico de pesquisa. Eu fui em busca, mas eu percebi a importância disso por conta de um casal de alunos. Eles me disseram que queriam muito ser professores universitários e me pediram ajuda. Foi principalmente por causa deles, que hoje são pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia, que eu decidi me dedicar mais a pesquisa, para conseguir, com eles, fortalecer o currículo e buscar boas publicações.
As mulheres não são uma exceção na ciência, por que é tão difícil elas chegarem nos cargos mais altos e nas posições de destaque? Nós poderíamos falar por horas sobre isso, mas eu vou explicar com alguns exemplos. Lá atrás eu fiz graduação na Universidade Santa Úrsula, uma faculdade privada do Rio de Janeiro. Nessa época, éramos poucos negros e menos ainda mulheres negras. Quando cheguei na UFMG, era a única pessoa negra em classe, meus alunos eram todos brancos. Muitos ficam pelo caminho. Nós mulheres ainda enfrentamos a maternidade, que nos abriga a diminuir bastante o ritmo. Quando vieram as ações afirmativas, esse perfil mudou muito. Hoje eu vejo as minhas turmas muito mais plurais e acredito que isso vai continuar mudando.
Além de entrarem nas universidades, essas pessoas também estão sendo bem recebidas nesse ambiente? Depende. Para algumas pessoas, e isso já me aconteceu inúmeras vezes, causa estranheza o meu fenótipo na posição que ocupo. Já cheguei em reuniões em que me perguntaram quem eu estava acompanhando. Já estive em sala e alunos me perguntaram quem era o professor. São nesses momentos que nós precisamos jogar o currículo na mesa. Um colega me disse, uma vez, que com as cotas raciais, as universidades escureceram, empobreceram e emburreceram. É duro ouvir esse tipo de coisa. Nós ainda temos que matar um leão por dia — tem horas que dói, tem horas que dá vontade de chutar o balde, mas nós temos que seguir. Nós não podemos ser bons, temos que ser os melhores.
E qual o benefício prático da maior diversidade? Trabalhando com ciências biológicas, com o conhecimento da vida, a resposta é sempre que, quanto mais diversidade, melhor. Com mais pessoas diferentes, mais soluções novas surgem para problemas antigos e complexos. Hoje em dia nós falamos muito sobre isso. Como nós chegamos até aqui apenas com a visão eurocêntrica? Hoje nós temos, por exemplo, Ailton Krenak mostrando a importância de se ouvir pensadores de outras origens. Quantos filósofos nós perdemos de ler porque até hoje só o olhar branco e eurocêntrico era valorizado? Quando existem várias visões, surgem também outros horizontes e outras capacidades.