Estudo revela nova teoria sobre a formação da memória
Pesquisa rastreia o caminho de uma lembrança no cérebro e abre portas para o tratamentos de doenças como Alzheimer
Qual o caminho percorrido pela mente humana até que uma experiência vivida se transforme em memória? Inicialmente, acreditava-se que um fato era armazenado em uma área específica do cérebro e, de acordo com sua utilidade, o registro era descartado rapidamente ou transformava-se em um fato marcante, capaz de ser recordado por muito tempo. Contudo, essa ideia tem sido rejeitada nos últimos anos por estudos que apontam que todas as lembranças podem ser armazenadas em diversos pontos do cérebro, ao mesmo tempo, sem qualquer distinção. Para essa linha de pesquisa mais recente, o importante é descobrir o itinerário das memórias no cérebro — e como elas podem ser acessadas.
Na última semana, um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e publicado na revista Science trouxe novos indícios que fortalecem essa perspectiva e podem ajudar a desvendar a rota. Os cientistas conseguiram rastrear, pela primeira vez, as recordações, desde seu registro até serem, posteriormente, recordadas. Os resultados mostraram que, surpreendentemente, as lembranças são registradas em várias partes do cérebro ao mesmo tempo, ao contrário do que sugeriam as teorias mais aceitas sobre o tema.
“O trabalho abre portas para a compreensão da memória e de outros sistemas cognitivos, como os motores e sensoriais e suas funções, ampliando nossos conhecimentos sobre os mistérios do cérebro”, afirma o neuropsicólogo Paulo Jannuzzi Cunha, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
O novo estudo também mostrou que, em um primeiro momento (tempo equivalente a duas semanas), as recordações só podem ser acessadas pelo hipocampo – estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano. Só depois é que elas serão resgatadas ali e em outros locais da mente. Elas não migram no cérebro para se tornarem lembranças de longa duração. Essa conclusão, feita com o mapeamento dos neurônios, abre caminho para o avanço dos estudos neuropsiquiátricos que podem auxiliar no tratamento de doenças mentais, como o Alzheimer, além de condições de dependência química e de stress pós-traumático.
O caminho da memória
Para descobrir como se dá a atividade cerebral durante o processamento de uma memória, os cientistas americanos utilizaram ratos geneticamente modificados, que tiveram uma proteína sensível a luz instalada em suas células de engramas – estruturas cerebrais que surgem quando uma memória se forma, conhecidas pelos pesquisadores como a “parte física” de nossas lembranças. Os animais foram condicionados a desenvolver a recordação de medo quando colocados em um recipiente em que levavam choques.
Depois de oito dias do treinamento, os roedores foram colocados novamente no recipiente e demonstraram sinais de medo, como tremores e imobilização. Ao analisar o cérebro dos animais com uma luz que identificava onde estavam as células de engramas, os pesquisadores perceberam que elas estavam muito ativas no hipocampo. Mas, ao estimular artificialmente o córtex, eles também identificaram a presença das células engramas, ou seja, a memória também estava lá, só que não podia ser acessada naturalmente.
Em seguida, os cientistas repetiram o experimento com um maior intervalo entre o condicionamento de medo e o reposicionamento do animal no confinamento. A análise do cérebro revelou que, depois de duas semanas, as células de engramas alojadas no córtex também estavam ativas, sendo naturalmente acessadas pelos ratos. Ou seja, por mais que o mesmo registro seja feito no hipocampo e no córtex simultaneamente, ele só é acessado pelo segundo depois de alguns dias.
Impacto científico
“O estudo utilizou uma técnica de marcação ótica dos genes, que poucos laboratórios do mundo têm, para responder uma pergunta tão importante na área: como é a dinâmica da memória em cada estrutura do cérebro ao longo do tempo?”, aponta o neurocientista Lucas De Oliveira Alvares, professor de Biofísica e Neurociências e pesquisador do Laboratório de Neurobiologia da Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). “Ainda estamos longe de conseguir utilizar todo esse conhecimento para desvendar e tratar o Alzheimer e outros casos de perda de memória, mas a pesquisa abre caminhos interessantes.”
O estudo revela ainda a importância do córtex, cuja atuação na retenção da memória não era totalmente conhecida. Segundo Paulo Jannuzzi Cunha, da FMUSP, o trabalho tem um impacto amplo na área da neurociência e psicologia e pode possibilitar a criação de estratégias mais específicas para o tratamento de transtornos como dependência de cocaína ou crack, obesidade, ansiedade e stress pós-traumático.
“Esses casos são, em geral, baseados em histórias de condicionamento estímulo-resposta que causam muito sofrimento aos pacientes. Mas, a partir dessa identificação exata dos sistemas responsáveis pela formação das memórias, eles poderão ser abordados de maneira mais eficaz no futuro”, afirma Cunha.
Apesar de a pesquisa ser a primeira a registrar o caminho das memórias na mente, alguns neurocientistas argumentam que ainda são necessários mais estudos para que os resultados sejam aceitos. De acordo com Ivan Izquierdo, professor titular de medicina e coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), o estudo não oferece sustentação aos resultados apresentados. “A ideia de que a memória só pode ser acessada pelo hipocampo nos primeiros momentos vai contra todos os estudos anteriores. Já se provou que é possível acessá-la assim que gerada, tanto no hipocampo, quanto no córtex”, disse o pesquisador.