Um dos personagens mais misteriosos e assustadores de Watchmen, quadrinho de Alan Moore e Dave Gibbons, depois adaptado com sucesso para o cinema e a TV, Rorschach usa uma máscara com uma mancha escura em constante mutação. O nome de guerra do anti-herói e seu disfarce fazem referência a uma figura histórica na medicina, Hermann Rorschach (1884-1922), psiquiatra suíço da primeira geração de psicanalistas freudianos. Um ano antes de morrer, ele desenvolveu um teste baseado na tendência humana de projetar sentimentos e pulsões a partir de estímulos ambíguos — no caso, um conjunto de dez borrões de tinta. As respostas dos pacientes permitiriam a terapeutas treinados interpretar e identificar possíveis traços de personalidade e impulsos que não se revelariam espontaneamente. Lançado em comemoração aos 100 anos do experimento, o livro Teste de Rorschach (Darkside), do jornalista e tradutor americano Damion Searls, conta, em detalhes saborosos, a história do médico e sua criação. Além disso, mostra como a cultura pop absorveu elementos do sistema e os reproduziu no cinema, nos desenhos animados, nas artes plásticas, na música e até na moda.
O instrumento de avaliação psiquiátrica é usado até hoje no mundo e no Brasil, da clínica médica a projetos organizacionais, na educação e em processos criminais. “É um dos poucos produtos de 100 anos atrás que ainda permanecem vivos”, disse Searls a VEJA, em entrevista por telefone de sua casa em Minneapolis, nos Estados Unidos. “Ao ler o noticiário, é comum topar com a informação de que uma decisão judicial foi tomada com base no Rorschach.” No Brasil, Suzane von Richthofen, condenada a 39 anos de prisão por planejar o assassinato de seus pais em 2002, passou pelo teste duas vezes em 2017, quando entrou com pedido de conversão de sua pena para regime semiaberto. O resultado mostrou que Suzane teria personalidade egocêntrica, narcisista e que seria influenciável por condutas violentas. Sua demanda foi negada e ela segue encarcerada.
O pico de popularidade do teste aconteceu nos anos 1960, quando a contracultura tomou conta do mundo questionando as autoridades e habilitando quem quer que fosse a ter opinião. Com suas manchas enigmáticas e interpretações abertas, o teste de Rorschach se encaixava nesse modelo em que tudo era possível. A percepção popular, no entanto, não combina com a técnica, cujos sistemas de classificação mudam de país para país — no Brasil, usam-se o Sistema da Escola de Paris e o Sistema Anibal Cipriano da Silveira Santos. “Não existem respostas corretas”, resume Searls, que passou ele próprio pela avaliação. “O objetivo é determinar traços de personalidade e padrões de pensamento. Por isso, segue processos de aplicação rígidos e controlados por associações de classe. Além disso, não deve ser empregado de forma isolada.”
Alto, magro e loiro, Hermann Rorschach era também um artista amador cujos traços o aproximavam de um galã — um dos poucos retratos que restam dele mostram isso. Essa combinação e o clima efervescente da Europa que acabara de sair de uma guerra levaram-no a criar, sozinho, o famoso teste que leva seu nome, tendo como ponto de partida uma brincadeira de criança. Suas dez manchas (cinco em preto e branco e dez coloridas) entraram para a história como símbolo de uma era em que prosperaram avanços na psicologia, nas artes, na arquitetura, na física, na sociologia e em muitos outros campos. Um exemplo de que a criatividade sempre encontra uma maneira de se manifestar, apesar de tudo.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742