Isolamento. Eis uma palavra que se tornou inseparável do nome da doença que fez todas as potências do planeta curvar-se, a Covid-19. Se é irrefutável a eficácia do confinamento no combate ao surto epidêmico que castiga o mundo inteiro, não é possível negar quanto pode ser nocivo para o corpo humano manter-se por longo período fechado entre quatro paredes. Assim, para mitigar tal efeito, é providencial observar de que modo a ciência enfrentou o problema em situações algo semelhantes às que perto de um terço da humanidade está vivendo hoje. Um bom exemplo são as missões a territórios inóspitos como a Antártica, que no momento abriga uma equipe de militares do Brasil. É de lá que chegam algumas lições para quem não pode pôr os pés fora de casa.
Os cerca de 250 cientistas brasileiros que anualmente realizam estudos no continente gelado — assim como os astronautas enviados ao cosmo e mesmo os profissionais que atuam em submarinos ou plataformas de petróleo offshore — habitam ambientes chamados tecnicamente de ICE, sigla para definir locais “isolados, confinados e extremos”. As reações adversas de quem está submetido a situações que envolvem ICE frequentemente são estudadas em profundidade para que, dessas análises, surjam estratégias para amenizar os danos, físicos e mentais, que experiências de tal natureza possam provocar. Esse é o papel do projeto SaúdeAntar, que integra o Programa Antártico Brasileiro, vinculado à Universidade Federal Fluminense e ao Instituto de Pesquisas Heloísa Marinho, que coletou dados durante o último verão na Antártica, entre outubro e março. Com o estudo coordenado pelo psiquiatra Jairo Werner Júnior, doutor em saúde mental e professor da UFF, a instituição segue investigando os efeitos do isolamento e do confinamento naquele continente. A psicóloga Paola Barros Delben, do Laboratório Fator Humano, da Universidade Federal de Santa Catarina, voltado para o comportamento humano em ambientes ICE em geral, também tem na missão brasileira à Antártica um de seus objetos de estudo. Para ambos, é possível pensar em aproximações entre aquela experiência e o distanciamento social propagado contra a Covid-19 — o que pode resultar em dicas úteis para a população (veja algumas delas no quadro ao lado).
As orientações vão ao encontro das conclusões de Werner Júnior a respeito da expedição ao continente gelado, mas é preciso, alerta ele, guardar as devidas diferenças. “No caso da Antártica, o objetivo para as pessoas se colocarem naquela situação é profissional. Já em relação ao confinamento por causa do coronavírus, cabe a cada um dimensionar a própria experiência e enxergar o momento como parte da jornada da vida”, explicou o cientista. “No continente gelado, imaginamos determinados eventos, como uma virada de tempo brusca, que podemos enfrentar de forma prática. Na atual quarentena, ao contrário, é impossível sair para enfrentar o problema diretamente — e vivenciar isso pode significar adoecer”, compara o médico. “Por essa razão é importante buscar fontes confiáveis de informação e encontrar atividades que tragam relaxamento e diminuam a ansiedade: ler um livro, ouvir música, desenvolver um novo hobby. Esta pode ser uma oportunidade de autoconhecimento”, comenta Werner Júnior.
Sem desprezar as consequências físicas de um longo período em ambientes ICE, Paola Barros Delben chama atenção também para os impactos psicológicos observados em indivíduos que trabalham naquelas condições — e que podem ser relacionados às populações em quarentena imposta pela Covid-19. Alguns deles: transtorno de stress agudo, depressão, abuso de álcool e outras drogas vistas como suposto alívio para uma situação considerada insuportável. “Esses impactos podem causar o afastamento de pessoas mais próximas, incluindo as que dividem o mesmo teto, e potencializam o risco de morte”, alerta a psicóloga. “O resultado pode ser medido mesmo na economia, pois cerca de 50% dos indivíduos que estão expostos a situações de emergência podem apresentar alguns daqueles sintomas mais graves”, advertiu. Para Werner Júnior, é importante reconhecer a fase em que se está mergulhado e o momento de pedir ajuda. “É natural que exista o medo. Contudo, ele é um sentimento para garantir a sobrevivência, para que se consiga fugir de uma ameaça. Quando o medo domina o indivíduo a ponto de lhe causar paralisia, é hora de pedir auxílio”, afirmou o médico.
A astronauta americana Christina Hammock Koch ficou 328 dias na Estação Espacial Internacional. Para superar o isolamento, gostava de fazer exercícios e de socializar-se. Era um modo de estar consigo e com os outros. Detalhe: antes da viagem, Christina passou temporadas na Antártica (a Nasa costuma preparar suas equipes em estações polares). Sim, há lições do gelo para esta espécie de inverno que está escurecendo a Terra.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681