Aliança da genética com a paleontologia revela novas faces do passado
Descobrir a verdadeira aparência de personagens históricos ficou mais fácil para os cientistas
Em seu clássico livro A Vida dos Doze Césares, o historiador romano Caio Suetônio Tranquilo (69-141) escreve que Júlio César (100 a.C.-44 a.C.) era descrito como um homem “alto, de pele clara, membros bem torneados, rosto um tanto cheio e olhos negros penetrantes”. Suetônio nasceu mais de um século depois da morte de César, brutalmente assassinado a facadas no Senado de Roma, aos 55 anos de idade. Portanto, o biógrafo não teve contato nem conviveu com o biografado. Suas fontes para montar o retrato falado do personagem foram documentos, desenhos e outras representações artísticas, como as imagens de perfil cunhadas em moedas que circulavam à sua época. Não há, portanto, como garantir que ilustrações, pinturas, estátuas e bustos criados depois com base na descrição fossem muito fiéis à inescapável figura histórica. Se os restos do conquistador tivessem sido preservados — e não cremados, como ocorreu —, possivelmente os traços mais marcantes e mesmo o prontuário médico pudessem ser reconstituídos com alguma proximidade e fidelidade. Mas não.
Celebre-se, portanto, como extraordinário e promissor avanço, o recente trabalho dos geneticistas, de mãos dadas com os paleontologistas. Direto ao ponto: a revelação de porções do DNA de restos humanos têm permitido restabelecer a fisionomia de nomes proeminentes do passado. Recentemente, pesquisadores da Universidade Fudan, em Xangai, reconstruíram o rosto do imperador chinês Wu, que viveu 1 500 anos atrás, usando informação extraída de uma parte do seu crânio. O monarca reinou de 560 a 578, construiu um exército forte e unificou o norte da China antiga depois de derrotar uma dinastia inimiga. “Nosso trabalho deu vida a figuras históricas”, diz Pianpian Wei, coautora de um estudo publicado no fim de março, na revista Current Biology. “Anteriormente, as pessoas dependiam de registros históricos ou afrescos e murais para imaginar como eram os povos antigos.”
A reconstrução da face de Wu foi baseada nos restos do imperador, descobertos em 1996, e nas informações genéticas obtidas do sequenciamento do DNA que permanecia preservado nos fragmentos dos ossos. A investigação permitiu a identificação de mais de 1 milhão de polimorfismos, pequenas variações na sequência genética que conferem as características específicas de cada indivíduo — cor dos olhos, textura do cabelo etc. “Alguns estudiosos diziam que os Xianbei, grupo étnico do qual Wu fazia parte, tinham aparência exótica, como barba espessa, nariz alto e cabelo amarelo”, diz Shaoqing Wen, que também assina a pesquisa. A análise reconstruiu a imagem comum. O imperador tinha características faciais convencionais, típicas do leste ou nordeste asiático, indicando uma possibilidade de movimentação migratória naquela parte do Extremo Oriente.
Em outro comovente passo, o designer brasileiro Cícero Moraes publicou, em março, um estudo independente mostrando como teria sido a aparência de Nicolau Copérnico (1473-1543), astrônomo e matemático polonês que desenvolveu a teoria heliocêntrica — ele provou que os planetas do nosso sistema giram em torno do Sol. No trabalho, Moraes e seus parceiros usaram dados públicos envolvendo uma ossada descoberta em 2005, na Catedral de Frombork, na Polônia, e atribuída ao cientista. Em 2009, um teste de DNA atestou a compatibilidade do material extraído de três molares superiores com o fêmur e também comparou-o com dois fios de cabelo encontrados em um calendário que fora propriedade do cientista. O spoiler: Copérnico tinha olhos azuis solares como os de Frank Sinatra.
Embora seja uma ciência, a reconstrução facial forense, como é conhecida tecnicamente, tem lacunas. Por isso, especialistas preferem tratá-la por um nome mais adequado, “aproximação facial”. “Não é uma ferramenta de identificação, mas de reconhecimento”, disse Moraes a VEJA. A diferença é sutil, mas faz todo o sentido. Criar um rosto a partir de um crânio pode ser complicado, porque há aspectos que são incertos, como o tamanho e o formato do nariz. O sequenciamento genético de restos mortais e ossadas não dizem exatamente qual a feição da pessoa, mas indicam com maior probabilidade estatística que poderia ter olhos mais claros ou mais escuros. “O que fazemos é costurar abstrações de uma face que criamos baseados em probabilidades”, afirma Moraes.
Personagens de todas as épocas, é verdade, estão sujeitos a indefinições. Não se sabe exatamente as feições de William Shakespeare (1564-1616), o pai de Hamlet, embora circulem gravuras e pinturas que dizem ser do bardo, como a que ilustra esta página, inspirada no chamado Retrato de Chandos — a única que teria sido feita no tempo em que o artista ainda estava vivo. Há controvérsia envolvendo esta e outras imagens. E provavelmente seguirá um mistério, já que o crânio dele, enterrado em uma igreja de Stratford-Upon-Avon, provavelmente foi roubado e ninguém jamais obteve permissão para exumar o restante da ossada. Ser ou não ser, eis a questão — que a caça ao DNA pode, um dia, responder.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887