Não houve, naturalmente, a comoção da pomposa e ensaiada frase de Neil Armstrong, ao anunciar que dera “um pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade”, ao pisar em solo lunar naquele eterno 20 de julho de 1969. Mas no domingo 31 de maio de 2020, às 11h16, horário de Brasília, quando os astronautas americanos Douglas Hurley e Robert Behnken deixaram a cápsula Crew Dragon e entraram na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), a 400 quilômetros da Terra, houve ondas de entusiasmo. Foi a primeira e histórica parceria entre a Nasa e a iniciativa privada, por meio da SpaceX, do bilionário sul-africano Elon Musk, atalho para a inauguração de uma nova era de exploração espacial. Nas redes sociais brotaram brincadeiras em torno do sorriso dos dois cosmonautas, que estariam dando adeus à pandemia de Covid-19, ao surto de racismo e de protestos nos Estados Unidos, adeus a tanta coisa de ruim que anda acontecendo aqui embaixo. “O acoplamento está completo”, o aviso de Hurley, transmitido pela internet, soou como senha de alívio.
Sim, as coisas não andam nada bem no planeta (redondo, sim!) que se vê das escotilhas da ISS, mas há extraordinárias mudanças que precisam ser celebradas — e, sobretudo, uma revolução dentro da própria Nasa, afeita a mostrar como o mundo mudou, para melhor, desde que Armstrong caminhou em câmera lenta. A novidade: o programa espacial, que sempre foi maciçamente masculino, agora também é das mulheres.
Douglas e Robert, os dois tripulantes da Crew Dragon, entraram em órbita porque estavam na fila, era a vez deles. Mas a missão poderia ter sido realizada pela engenheira mecânica Karen Nyberg e pela oceanógrafa Megan McArthur, ambas astronautas da Nasa — embora Karen tenha se aposentado neste ano. Karen é casada com Douglas e Megan, com Robert. O quarteto se conheceu nos corredores da agência americana, terreno cada vez mais igualitário, menos machista. A estatística ajuda a entender a virada: de 1959 a 1969, 100% das pessoas formadas pelo curso para astronautas da Nasa eram homens. Em 2017, o índice caiu para 55%. Vai longe, portanto, o tempo em que uma personagem popular como Jeannie, do seriado Jeannie É um Gênio, de 1965, se insinuava para o patrão astronauta, o major Nelson, chamando-o insistentemente de “meu amo”. Ficou para trás a figura clássica, hoje deslocada, da mulher de astronauta, a quem bastava estar ao lado do marido em eventos sociais, em paradas militares, em visita à Casa Branca. Não teria espaço o comentário de Buzz Aldrin, um dos três heróis da Apolo 11, a respeito de sua companheira, Joan, morta em 2015: “O futuro lembrará de Joan Archer Aldrin como uma mãe e mulher de fala mansa, que criou três filhos bem-comportados”.
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Clique e AssineSão mães, têm filhos — mas fala mansa, não. No ano passado, a americana Christina Koch bateu o recorde feminino de permanência na ISS, e só retornou depois de 328 dias (a título de comparação, a turma de Musk deve ficar no máximo 120 dias em órbita). O governo americano aposta parte de suas fichas no programa Artemis, que promete pôr a primeira mulher na Lua até 2024. Do ponto de vista da igualdade de gêneros não é, ressalve-se, a vitória final e definitiva, longe disso. Somados todos os cosmonautas que foram ao espaço, apenas 11,5% são mulheres. Na Nasa, somente um terço dos funcionários é do sexo feminino. Há, portanto, uma estrada a percorrer — e são muitas as pedras no meio do caminho, algumas insólitas, quase inacreditáveis.
Os engenheiros da Nasa descobriram, apenas muito recentemente, que todos os estudos de uniformes espaciais tinham sido feitos com base em altura, musculatura e metabolismo de homens, em mais de setenta anos de pesquisas. As mulheres nunca foram incluídas, e corre-se, agora, atrás do tempo perdido. Dentro dos trajes espaciais, os astronautas usam roupa de refrigeração e ventilação líquida. São metros e mais metros de tubos que bombeiam água, de modo a resfriar o organismo. Problema: homens suam mais do que as mulheres e em partes diferentes do corpo. E a Nasa descobriu, talvez tardiamente, mas sempre em tempo, que seria preciso inaugurar uma nova linha de investigação que contemplasse, além da preparação em terra, os efeitos da falta de gravidade na dinâmica feminina — a régua foi sempre masculina. Convém, portanto, prestar atenção em Karen e Megan, e não apenas em Douglas e Robert, os terráqueos que se afastaram um tempinho da pandemia.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690