Até onde se saiba, Leonardo da Vinci (1452-1519) nunca teve companhia feminina. Ao contrário: como informa o biógrafo Walter Isaacson, são pródigos os sinais de que o gênio renascentista era gay e chegou a dividir o teto com um rapazote com cara de anjinho. E nada faz crer que tenha deixado filhos. Mas seu irmão, Domenico, se casou e teve descendentes, sim. Esse detalhe prosaico permite agora à ciência investigar a genialidade do mestre com uma arma inédita: a genética. Parceria entre as universidades Rockefeller, em Nova York, e de Florença, na Itália, a iniciativa Leonardo da Vinci DNA Project busca recuperar os genes do pintor e identificar possíveis segredos sobre suas habilidades. “Ele não era só criativamente excepcional, era um ponto fora da curva também no sentido biológico”, explica o cientista americano Jesse Ausubel, coordenador do projeto.
Uma das frentes desse esforço vem de um estudo publicado recentemente na revista Human Evolution. Os historiadores italianos Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato debruçaram-se sobre documentos históricos como registros de igrejas e testamentos para reconstruir a árvore genealógica da família a partir da prole de Domenico, abarcando 21 gerações. Identificaram catorze descendentes vivos, entre 1 e 85 anos, todos moradores da Toscana e com ocupações frugais, como escriturário e artesão. Milko di Mario, último identificado nominalmente, nasceu em 1976, é funcionário público e apaixonado por motociclismo e música. “São pessoas comuns. Será interessante realizar outros testes para verificar o potencial oculto ou traços de semelhança com Leonardo, como sua visão extraordinária”, afirma Sabato.
O passo seguinte será iniciar os testes diretamente nos célebres cadernos de Da Vinci conservadas na Biblioteca Nacional de España, o que deve acontecer nos próximos meses. “Vamos aplicar as técnicas de retirada de DNA nas páginas e comparar o material genético encontrado nelas com o dos descendentes”, diz Ausubel, que tem uma curiosidade especial pela visão espacial do gênio. “Se tivermos DNA suficiente, podemos aprender mais sobre isso.”
Para chegar a esse ponto, os cientistas tiveram de desenvolver técnicas capazes de garantir que nenhum dano seja causado aos manuscritos originais. Descobriram que é possível extrair DNA usando uma borracha, instrumentos a vácuo ou retirando pedaços microscópicos do papel. Mas há um empecilho: embora Da Vinci certamente tenha manuseado seus cadernos, eles também transitaram por muitas mãos ao longo dos séculos. O desafio é saber qual dos DNAs identificados é realmente o dele — e a melhor forma de fazer isso é comparar com os genes de descendentes.
A estratégia tem precedentes: em 2010, pesquisadores receberam a missão de desvendar a morte de Caravaggio, que faleceu aos 38 anos, em 1610, sob circunstâncias misteriosas. Eles precisavam identificar os restos mortais do pintor, e exumaram esqueletos do local onde acreditava-se que ele estivesse enterrado. Lá, acharam um que batia com as características, mas era preciso ter certeza. Foram então até a cidade de Caravaggio e testaram o DNA dos habitantes que compartilhavam o sobrenome do pintor, Merisi. Foram cerca de vinte testes, todos positivos para algum grau de parentesco. Com isso, analisou-se a ossada e, em 2018, conclui-se que o mestre barroco padeceu de uma infecção pela bactéria Staphylococcus aureus, decorrente de um ferimento de batalha, e não de sífilis, como se acreditava. Quem também teve seu DNA vasculhado foi o inglês William Shakespeare. Em 2019, a Folger Shakespeare Library, que guarda a maior coleção do bardo, testou uma Bíblia de 400 anos e identificou genes de dois europeus — um deles, concluíram, era de alguém com tendência a ter espinhas. Para saber se o DNA acneico é ou não realmente de Shakespeare, será preciso identificar seus descendentes e testá-los, o que já inspira curiosidade.
No caso de Da Vinci, na hipótese de ser encontrado o DNA, a descoberta poderá ter impactos que vão além da especulação sobre sua genialidade: com uma “assinatura” hereditária definida, seria possível compará-la em obras sobre as quais pairam dúvidas sobre a autoria. Em tese, a mesma técnica poderá ser estendida a outras figuras históricas. “No futuro, conseguiremos fazer uma biblioteca genética de artistas e ajudar na atribuição de suas obras”, diz Ausubel. Tendo em conta a trajetória de Da Vinci, faz muito sentido arte e ciência caminharem de mãos dadas.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747
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