Pequenas tribos de índios sem roupa vivendo em ocas rudimentares e caçando peixes para comer no jantar. Esta é a imagem que a maioria das pessoas tem dos povos que habitaram o Brasil antes da chegada dos portugueses, em 1500. Mas e se alguém dissesse que as coisas não aconteceram exatamente como você aprendeu na escola? O livro 1499 – O Brasil antes de Cabral (HarperCollins, 248 páginas, 34,90 reais na versão impressa), escrito pelo jornalista científico Reinaldo José Lopes, conta uma história diferente: com base em estudos de ponta e descobertas recentes no campo da arqueologia, a obra revela toda a complexidade de algumas das sociedades que povoaram o território brasileiro desde a pré-história, começando com a chegada dos primeiros Homo sapiens à América do Sul e terminando alguns anos após os barcos lusitanos atracarem pela primeira vez em terras baianas. O livro ocupa, pela terceira semana consecutiva, posição de destaque entre as principais obras de não ficção na lista dos mais vendidos de VEJA. Confira a entrevista com o autor.
No seu livro, você conta uma outra versão da história do Brasil, que não costuma aparecer nos livros escolares comuns. O que o motivou a escrever sobre o assunto? As pessoas tendem a enxergar a história do Brasil antes da chegada de Cabral mais como um prólogo. Mas o que temos visto pelas pesquisas de ponta realizadas nos últimos anos é que aqui viviam populações densas, com dezenas de milhões de habitantes, que formavam sociedades complexas, habitavam lugares que poderiam ser chamados de cidades e produziam uma arte requintada. O que falta para que as pessoas entendam isso é incorporar as descobertas recentes ao currículo escolar, basicamente, coisa que demora e enfrenta uma inércia natural – e que mais gente faça o que eu fiz e divulgue essas descobertas.
Por que esse passado brasileiro não é abordado em sala de aula? Há uma necessidade de quebrar estereótipos. No geral, a visão que vem da escola é muito ultrapassada. O que os últimos estudos têm descoberto se opõe à imagem primitiva que criamos dos povos que habitavam o Brasil pré-cabralino – no geral, de que eram tribos de índios nus caçando e pescando, sem grande diferenciação social.
Isso tem relação com a imagem que temos de que os europeus eram “mais avançados” do que os povos brasileiros? Medir complexidade é, sem trocadilho, um negócio meio complicado. Os europeus de fato tinham uma vantagem em relação aos indígenas do Brasil – não em relação aos dos Andes ou da América Central, porém – em termos de complexidade social e política, que era o fato de eles virem de uma sociedade com Estado. Isso fez uma diferença grande, mas portugueses e espanhóis só “ganharam” um Estado porque os ancestrais deles foram engolidos pelo rolo compressor do Império Romano. Antes disso, a organização social dos habitantes da Península Ibérica, bem como a de praticamente toda a Europa Ocidental atual, era idêntica à das sociedades complexas do Brasil: eram chefias ou chefaturas, não Estados. Aparentemente, Estados precisam de condições relativamente especiais para evoluir, que talvez tenham a ver com o controle muito estrito de recursos escassos. E, depois que viram impérios, os Estados tendem a ser exportados para as regiões em que não há organização estatal. Isso quer dizer que um Estado nunca evoluiria no Brasil sem a intervenção europeia? Não dá para saber, mas o que fica claro considerando a trajetória da Europa é que não é por incompetência “inata” que certos povos não chegaram sozinhos à organização estatal. Muitos grupos indígenas eram tão complexos quanto os vikings antes de virarem cristãos, os gauleses antes de perderem para César ou os gregos da época homérica.
Grande parte das descobertas relatadas no livro utiliza a arte deixada pelos povos e a distribuição atual dos diferentes idiomas pelo território brasileiro como ferramentas para reconstruir o passado. O que esses elementos dizem sobre a nossa história? Línguas e arte contam uma infinidade de coisas, mas dá para destacar algumas. No primeiro caso, o grau de diferenciação e a distribuição geográfica das línguas dão pistas sobre como os povos que as falavam se desenvolveram ao longo do tempo. O grande exemplo são as línguas da família ou tronco tupi. Existem (e existiram) dezenas delas, mas a maior diversidade desses idiomas está concentrada num canto relativamente pequeno de Rondônia. Nosso litoral, quando os portugueses chegam, tem praticamente um idioma só, o tupi antigo ou clássico, falado do Maranhão até São Paulo, com algumas línguas de outras famílias “perdidas” ali no meio de vez em quando. Tanta homogeneidade equivale ao latim falado em boa parte da Europa ao longo da época romana. É sinal de que os falantes do tupi conquistaram uma região imensa em relativamente pouco tempo e impuseram seu idioma aos moradores originais do litoral. Já a arte mostra, em vários casos, um grau de padronização e sofisticação – três tipos de tinta e esmalte na cerâmica, apliques, modelagens, desenhos, motivos recorrentes, entre outras coisas – que dá pistas indiretas sobre a economia e a sociedade. Esse tipo de sofisticação, em lugares como a ilha de Marajó e Santarém, no Pará, só parece ter sido viável pela presença de uma classe de artesãos especializados – e, portanto, uma elite que consumia essa arte e uma economia que sustentava essa especialização.
O que temos a aprender nos dias de hoje conhecendo a história dos nossos antepassados? Primeiro, que a natureza do país não era intocada. Ela foi constantemente alterada e manejada pelos povos que estavam aqui em benefício de seu sustento – mas de um jeito mais sofisticado do que a nossa monocultura, que desmata tudo e joga boi ou soja nos escombros. Eles chegaram a construir seu próprio solo, com a terra preta da Amazônia, extremamente fértil. Então, o dilema não é usar ou não a natureza. Tem de usar, mas com a cabeça, com cuidado, pensando no longo prazo. Em segundo lugar, acho que outra lição tremenda é como a “vitória” europeia dependeu de pura sorte, de coisas como o passado romano ou a existência de mamíferos domésticos de grande porte do outro lado do Atlântico, bichos que se extinguiram aqui e por isso não foram domesticados. Bastaria uma giradinha na “roda da História” de outro jeito para a situação se inverter. Bater no peito e falar da superioridade inerente europeia é falta de considerar esses fatores estocásticos, contingentes, aleatórios.