Nascer e ser criada por uma mãe solo, que ralava como trabalhadora doméstica numa periferia de São Paulo, me fez cultivar aquela ideia de que teria que me mexer contra profundas desigualdades. Mesmo vinda de um cenário em que chances de sucesso eram tão improváveis para gente como eu, botei na cabeça que queria me formar advogada e combater um tipo de injustiça que sempre me atingiu por ser negra. E assim cheguei à faculdade, agitando a bandeira antipreconceito. De contato em contato, acabei sendo indicada, em 2020, para ajudar os atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso na defesa da filhinha deles, que havia sido chamada de “macaca” e alvejada com xingamentos variados por uma influencer. Ela tinha apenas 4 anos. Foi um processo intenso, que revirou memórias doídas da minha própria existência, já que, também eu, fui essa criança que penou com a intolerância baseada na cor da pele, tentando ocupar espaços que não uma, nem duas vezes, mas frequentemente me negavam. E não é que toda essa batalha me levou a ganhar o prêmio da ONU de uma das afrodescendentes mais influentes do planeta? Uma honra e um sinal de que estou na trilha certa.
Ao trabalhar duro no caso de Títi, adicionei às leis minha vivência, movida por uma sensibilidade que só quem experimentou sabe. Deu certo. Conquistamos a maior sentença já aplicada no Brasil por racismo e injúria racial contra uma única pessoa — quase nove anos de prisão —, da qual a acusada agora recorre. Comecei a entender melhor as dimensões do racismo justamente quando entrei na universidade. Ganhei bolsa integral na PUC e me tornei a primeira da família a ingressar no ensino superior. Mas não foi nada fácil. Ser negra num lugar predominantemente branco me colocou frente a frente com a discriminação. Precisava provar a cada minuto que merecia estar ali, que tinha tanta capacidade e inteligência quanto meus colegas. Às vezes, não me aceitavam em trabalhos de grupo e riam de eu ter de pegar quatro transportes para estar lá.
Mais tarde, na busca por estágio, fui rejeitada por morar no subúrbio e não ter feito intercâmbio nem apresentar inglês fluente. Muitas eram — e são — as engrenagens da exclusão. O ano de 2022 foi um divisor em meu percurso contra essa chaga. Resolvi fundar o Instituto Desvelando Oris, uma organização social que dá palestras de conscientização e busca abrir as portas do sistema judiciário brasileiro aos negros, oferecendo-lhes um leque de contatos valiosos. Em pouco tempo, já impactamos a vida de mais de 5 000 indivíduos. Esse trabalho, que tanto me enche de orgulho, acabou me dando visibilidade — a ponto de ser aplaudida em Nova York por uma plateia que reunia gente da mais alta excelência e comprometimento com a causa negra, me saudando pelo prêmio.
Sei que já caminhamos muito, mas não podemos parar — o racismo está impregnado no sistema em que vivemos e presente em todas as esferas, inclusive na própria Justiça. Para que os tribunais sejam realmente justos, é preciso haver mais representatividade, tendo pessoas negras em cargos de poder, tomando decisões relevantes. A educação antirracista também é fundamental na formação dos profissionais do direito, para que compreendam a complexidade dessa intolerância e atuem de forma igualitária. Encontrei em meus projetos uma forma de ampliar minha voz, as nossas vozes, e inspirar as pessoas. Quando comecei a atingir milhares delas, muitas nas redes, entendi como converter o mundo on-line em ferramenta de transformação social. Fico feliz por ter conseguido escrever para Títi e para mim mesma uma história da qual sentiremos orgulho, e não dor, ao contar.
Juliana Souza em depoimento a Sara Salbert
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916