O início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil foi marcado por um embate entre João Doria e Jair Bolsonaro. Acertadamente, o governador investiu para trazer ao país quanto antes uma solução — no caso, a chinesa CoronaVac, produzida em parceria com o Instituto Butantan. Esse movimento gerou uma reação negativa do Palácio do Planalto, com o capitão chegando a declarar que jamais compraria a “vacina do Doria”. Como se sabe, não fosse a insistência do tucano paulista em levar a iniciativa adiante, o plano de imunização nacional não teria começado em janeiro. A relutância em apoiar a CoronaVac e o desprezo pelas ofertas da Pfizer (conforme revelou a VEJA Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação do Planalto) viraram temas centrais da CPI da Pandemia. Além de se defender das graves acusações pelo atraso que aumentou a catástrofe sanitária, a gestão Bolsonaro vê agora se formar diante de si um movimento de governadores e prefeitos que tentam capitalizar o avanço da imunização e reforçar o estrago produzido pela política negacionista do capitão e sua tropa. Não há mais dúvida de que a população confia mesmo é em vacina no braço (mais de 90% dos brasileiros querem receber as agulhadas, segundo pesquisa recente do Datafolha).
Nos últimos dias, o embate político em torno da imunização entrou em uma nova fase. Tudo começou quando, no domingo 13, Doria publicou no Twitter um recado adiantando o calendário da vacinação no estado em trinta dias. Conforme a promessa, toda a população adulta terá recebido a primeira dose até setembro. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, acusou o golpe e, no mesmo post, reagiu na hora — lembrou que as doses haviam sido enviadas pelo governo federal, dentro do Plano Nacional de Imunização, e levou uma tréplica do tucano, que o chamou de recalcado. Até hoje, aliás, a CoronaVac ainda responde por mais de 50% das doses aplicadas no país. Não bastasse a argumentação fraca ao tentar defender o Palácio do Planalto, Queiroga provocou o efeito colateral de unir boa parte de políticos importantes contra o governo federal. Em referência a Doria, a quem chamou de “pai da vacina”, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), deu a largada para a “briga do bem”, a disputa para ver quem vacina mais e mais rápido — outros governadores, como os do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), entraram na “disputa” (veja o quadro).
A turma confia que tem doses na agulha, em contraste com a penúria dos últimos meses. Somente 11% dos brasileiros até agora foram completamente imunizados. Mas o início da entrega das doses compradas da Pfizer, a liberação do uso da Sputnik V e da Covaxin, a chegada prometida de lotes da Janssen e a retomada da produção nacional pelos institutos Butantan e Fiocruz (AstraZeneca) permitem pensar em dias melhores. Para aproveitar a onda positiva, os governadores passaram a acelerar a aplicação. No Maranhão, por exemplo, Flávio Dino criou os “arraiais da vacinação”, eventos em que enfermeiros atuam em meio a um clima de festa junina, com direito até à distribuição de acepipes típicos. Graças a essa e a outras iniciativas, pelo menos dez estados estão com projeções adiantadas em relação ao Ministério da Saúde, que espera terminar a campanha entre a população adulta até dezembro.
Em meio a essa nova rodada de embate político em torno da imunização, governo e oposição discutem nos bastidores quanto o esforço (ou falta de esforço) no combate à Covid-19 terá efeito na corrida de 2022 ao Palácio do Planalto. Doria é um exemplo da dificuldade em dimensionar hoje qual será a importância do assunto. O fato de ser o “pai da vacina” ainda não alavancou como se esperava sua popularidade. Segundo levantamento do instituto Paraná Pesquisas desta semana, o tucano patina em torno de 4% das intenções de voto nas pesquisas. Ainda que o reconhecimento pelo trabalho com a CoronaVac venha mais adiante, a disputa deve ocorrer em um momento em que o problema da imunização não estará mais entre as principais preocupações dos eleitores. “Vão surgir outros temas”, afirma o cientista político e professor da PUC Ricardo Ismael. Rival de Doria na disputa tucana para eleger o candidato do PSDB a concorrer no pleito, o governador gaúcho Eduardo Leite aposta num efeito limitado. “A grande discussão será o que vem pela frente. A análise do passado é mais para verificar a capacidade ou incapacidade para lidar com os problemas do futuro”, avalia. É consenso entre os políticos, no entanto, que, mesmo que não seja decisiva, a postura de cada chefe de Executivo na imunização terá um peso. “Todos seremos cobrados no futuro pelas atitudes que estamos tomando hoje”, acredita o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB).
Os afagos entre os governantes que estão prometendo antecipar a vacinação de adultos atiçaram eleitores a questionarem seus mandatários sobre o tema. Quem não gostou nada da cobrança foi o governador da Bahia, Rui Costa (PT), que reclamou que as promessas são feitas “sem base concreta”, já que o “governo federal não cumpre o prazo de entrega das vacinas”. De fato, foram ao menos dezessete mudanças nos números anunciados nos cronogramas do Ministério da Saúde, que espera entregar entre junho e setembro mais de 213 milhões de doses (veja o quadro).
Os efeitos da vacinação — ou da não aposta nela, como no caso de Jair Bolsonaro — têm alcance de difícil mensuração no momento, até porque falta muito para 2022. Além da influência de outros fatores, como a economia, a cientista política Maria Teresa Kerbauy, professora da Unesp e da UFSCar, lembra que a imunização tem potencial de esquentar a campanha nas ruas hoje (como se sabe, a oposição realiza manifestações contra Bolsonaro neste sábado). “A população vacinada vai se sentir segura para se mobilizar”, diz. Independentemente do peso do assunto em 2022, resta hoje a certeza de que é muito melhor ver o país finalmente empenhado numa “corrida do bem” do que se pautando por fake news e teorias malucas de remédios sem comprovação.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743