Foram cenas de guerra. A madrugada de terça-feira, 27 de fevereiro, no Rio de Janeiro foi marcada por tiroteios entre a polícia e a bandidagem escamoteada nos complexos do Alemão, da Maré e da Penha e em outras onze favelas nas Zonas Sul, Norte e Oeste da cidade. A megaoperação mobilizou 500 agentes das polícias Civil e Militar, que mataram nove suspeitos, prenderam outros dez e apreenderam doze armas, entre fuzis e pistolas. Mais de 20 000 alunos ficaram sem aula, com as escolas fechadas, unidades de saúde tiveram as atividades suspensas e alguns milhares de moradores foram impedidos de sair de suas casas para trabalhar. À primeira vista, parecia apenas mais um capítulo, o mais do mesmo, no jogo de gato e rato que há décadas se instalou entre as forças do estado e os criminosos. O conflito, contudo, trouxe à tona um fenômeno que se espalha, com imenso poder de destruição: o casamento entre o narcotráfico e as milícias — a “narcomilícia” —, aliança maligna que dificulta ainda mais o combate ao horror.
Todos os territórios em confronto têm em comum o fato de serem dominados pelo autodenominado Comando Vermelho (CV), historicamente atrelado às drogas, a maior facção fluminense. Mas a polícia está particularmente preocupada com a atuação na Região Oeste, onde lideranças do CV da Cidade de Deus deram as mãos para milicianos dissidentes, que se arvoram a ocupar espaço onde o estado não entra, e chegaram a controlar a comunidade da Gardênia Azul. O grupo formado pelos dois times já tentou em três ocasiões avançar sobre Praça Seca, Rio das Pedras e Muzema e o trabalho de inteligência identificou novos planejamentos para um futuro próximo. Sabe-se estar em movimento um grupelho batizado de “Equipe Sombra”, espécie de força tática do narcotráfico, que usa métodos paramilitares para liderar invasões e cometer assassinatos. Como reação, os adversários milicianos se bandearam para os lados do Terceiro Comando Puro (TCP), principal rival do CV nos morros, também afeito ao narco. É espantoso e inaceitável.
O termo “narcomilícia” já vinha sendo empregado havia algum tempo pelos representantes da lei para designar as quadrilhas que uniam as táticas de comércio de drogas e de domínio de serviços públicos, como transporte, venda de gás, fornecimento de conexão com a internet e TV a cabo clandestinos. “Há a percepção de que, não só a milicia lucra com a comercialização de entorpecentes nas áreas onde exerce sua influência territorial, como também as facções de tráfico adotam práticas tradicionalmente milicianas como extorsões. As facções de tráfico passaram a não só exigir dos moradores e comerciantes taxas de proteção, como também exercer o monopólio das vendas de água, botijões de gás, além da distribuição de sinais de TV e internet. Da mistura e igualdade de atividades de ambos os grupos armados, surge o neologismo”, explica Fábio Correa, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio. Mas o que se vê agora representa um novo passo: um pacto estratégico com o objetivo de aumentar o poder bélico e o capital desses grupos. “Se você não produz dinheiro no mesmo volume, não compete em pé de igualdade com os adversários”, diz um delegado que acompanha o tema de perto. Segundo as investigações, já se percebe a mesma sociedade em bairros da Baixada Fluminense e da Zona Norte, como em Madureira. “As distinções entre milícia e tráfico de drogas ainda existem, mas vemos cada vez mais associações pontuais”, diz o pesquisador Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense.” A entrada do CV nesse tipo de relação é uma novidade dos últimos anos”.
A Polícia Civil e o Gaeco monitoram a possibilidade de as narcomilícias se espalharem também por Santa Cruz e Campo Grande, dois bairros da Zona Oeste cujo domínio estava sob o controle do Bonde do Zinho, o apelido do chefão Luis Antonio da Silva Braga. A súcia é a maior milícia do Rio, cujo faturamento chegaria a 120 milhões de reais por ano. Ela se esfacelou depois de brigas internas, que levaram Zinho a se entregar à PF, na véspera de Natal do ano passado. Um dos sucessores e homem de confiança do delinquente já se uniu ao CV no passado para fornecimento de armamento pesado. Na favela do Antares, o conflito é considerado iminente. “Quando você enfraquece uma organização, outra vê uma oportunidade de tomar o território”, disse a VEJA Victor César Santos, secretário de Segurança do Rio. “Isso já estava sendo monitorado, mas agora começou a crescer. A megaoperação pretende estancar esse deslocamento dos criminosos para outras áreas.” A briga pelo espólio de Zinho, aliás, já produziu oito mortes desde dezembro do ano passado. Na tentativa de fugir da lógica do confronto, a polícia trabalha para ferir a estrutura financeira das organizações criminosas, na clássica tática de seguir o cheiro do dinheiro.
Na quarta-feira 28, foram cumpridos mandados de busca e apreensão em 21 endereços, ligados a nove pessoas físicas e sete jurídicas, que seriam responsáveis por lavar o dinheiro obtido de forma ilegal. “Se a gente atacar a parte financeira, esses grupos que dependem do domínio do território para obter lucro ficam enfraquecidos”, diz Santos. É o que se espera. Até o momento, porém, a capacidade de articulação e a inteligência da criminalidade têm sido superiores às do estado em lidar com o problema. Está mais do que na hora de virar o jogo.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882