Na canção mais conhecida da banda britânica The Police, Every Breath You Take, o vocalista Sting diz que vai continuar acompanhando cada passo, suspiro e sorriso da musa que o abandonou. “Estarei te vigiando”, promete, no célebre refrão. Transportada para a vida real, uma declaração nesses termos ganha, inevitavelmente, um sinistro tom de obsessão, a marca registrada de um crime que a internet facilitou e amplificou tremendamente: o stalking, nome em inglês que define o ato de, em nome de uma paixão ou admiração doentia, a pessoa perseguir, ameaçar, atormentar e invadir reiteradamente a privacidade de outra. Delito reconhecido e punido na Europa e nos Estados Unidos há mais de três décadas, o stalking só foi incluído no Código Penal do Brasil no ano passado. E, de lá para cá, o número de denúncias levadas à Justiça não para de aumentar, tirando o assunto das sombras e conduzindo-o aos holofotes.
Só no estado de São Paulo, 17 195 queixas de stalking (pronuncia-se “istólquim”) foram registradas em 2021, a maioria feita por mulheres que se tornaram alvo de perseguidores tanto na internet quanto no mundo real. Um levantamento realizado por VEJA junto aos Tribunais de Justiça de catorze estados brasileiros, que concentram mais de dois terços da população, revelou a existência de 4 791 processos criminais instaurados desde a promulgação da lei, em abril de 2021. Os stalkers estão sujeitos a penas que variam de seis meses a dois anos de prisão e multa. “A nova lei proporciona um instrumento legal importante para coibir esse comportamento perverso e nocivo”, diz a advogada Luciana Gerbovic, autora de um livro sobre o tema. Mesmo estando em elevação, os casos notificados no Brasil ainda se situam bem abaixo dos de outros países. Pesquisa nacional de violência sexual nos Estados Unidos mostrou que uma a cada três mulheres americanas declara ter em algum momento sofrido stalking.
Se o assédio constante já é motivo de angústia e desolação, o stalking, pela violência e potencial de perigo, é muito mais preocupante — a vítima passa a ter a vida controlada pelo seu perseguidor a ponto de ser obrigada a mudar de hábitos. Nos últimos cinco anos, Marisa (nome fictício), 29 anos, conta que sofreu ameaças frequentes da ex-companheira de seu marido, além de ser torpedeada por mensagens ofensivas nas redes sociais e aplicativos. A situação se agravou quando a agressora começou a ir às festas de família só para intimidá-la. “Na frente dos outros, era supersimpática, mas sempre dava um jeito de me assustar com indiretas e ficar me encarando”, relata Marisa, que deixou de sair de casa e desativou seu perfil no Facebook. “Fiquei paranoica. Qualquer pessoa que me olhasse na rua eu achava que era ligada a ela e estava me seguindo”, descreve Marisa, que por fim criou coragem, disse que ia à polícia e se livrou da perseguição. “O stalker não se contenta com a atenção de quem persegue. Ele quer provocar medo, causar danos psicológicos e destruir a vida das vítimas e de seus familiares”, explica Margareth Zaganelli, professora de direito da Universidade Federal do Espírito Santo.
Estudos revelam que as consequências podem ser graves e duradouras, provocando transtorno de estresse pós-traumático, depressão e ansiedade nas pessoas afetadas. “Sintomas como insegurança, medo e estresse em ocasiões sociais são comuns”, aponta a psiquiatra Alcina Juliana Soares Barros, da Academia Americana de Psiquiatria e Direito. O cineasta Uriel Marques, 26 anos, passou a desconfiar de todo mundo e prefere se manter recluso depois de ser incessantemente perseguido por um estranho. Morador de uma cidade pequena de Minas Gerais, Marques a princípio achou que era coincidência a presença de um homem de meia-idade nos lugares que frequentava, mas com o tempo passou a suspeitar de perseguição e se deu conta da gravidade da situação quando ela evoluiu para importunação sexual. “Ele se escondeu atrás de um poste na esquina da minha rua. Quando cheguei perto, vi que estava se masturbando”, conta. Constrangido, e achando que não lhe dariam crédito, não prestou queixa.
A maior parte das vítimas de stalking são mulheres e, em muitos casos, a obsessão pode ser fatal: segundo o Stalking Resource Center, ONG americana que trata do assunto, 89% das vítimas de feminicídio nos Estados Unidos foram perseguidas antes de ser assassinadas. Na Califórnia, celeiro de celebridades — o alvo preferencial dos stalkers, por terem a vida continuamente devassada —, o homicídio da atriz Rebecca Schaeffer por um fã obcecado levou à aprovação de uma legislação antistalking em 1990, que endureceu nos últimos tempos com o aumento de casos (veja relatos abaixo) impulsionado pela internet. Aqui, a prática se tornou crime depois que a radialista Verlinda Robles, 57 anos, de Mato Grosso do Sul, contou para seus ouvintes o drama de ser frequentemente importunada por um homem que se declarava apaixonado. Ela precisou mudar de cidade várias vezes e amargou dois anos de insistentes ligações e presentes do “admirador” até obter uma medida protetiva na Justiça. “Até hoje tenho medo de estar em lugares abertos, de atender telefone e de interagir nas redes sociais. Se estou sozinha, minhas portas e janelas ficam sempre trancadas”, diz Verlinda.
Quando se trata de pessoas conhecidas, a aproximação com os fãs via redes sociais serve de porta de entrada para os stalkers, que interpretam a fartura de detalhes sobre a vida pessoal dos famosos como comprovação de uma surreal intimidade que não existe. Em fevereiro, um seguidor de Paolla Oliveira, o português Luís Mário Piçarra, invadiu o condomínio da atriz, no Rio de Janeiro, depois de enviar recados ameaçadores durante três meses pelo Instagram. Ela e o namorado, o músico Diogo Nogueira, foram à polícia e Piçarra acabou extraditado. “Atravessamos um período muito complicado. Recebemos ameaças graves. Mas agora estamos vivendo em paz”, diz Diogo.
Da mesma forma que o stalking, o ciberstalking, quando se monitora e invade a privacidade alheia através de mensagens, comentários e ligações no universo digital, também é delito passível de prisão — o que não detém criminosos dispostos a tudo para aterrorizar o alvo de sua obsessão. “Ao serem rejeitados, os perseguidores costumam tentar contato com amigos e família das vítimas. É comum criarem perfis falsos para ter acesso a tudo o que a pessoa publica”, alerta Juliana Cunha, diretora da ONG Safernet. A recomendação dos especialistas é examinar com atenção as mensagens recebidas, proteger com afinco os dados pessoais e desconfiar de desconhecidos insistentes demais em criar laços. Lembrando sempre que contar com a admiração das pessoas é muito bom — até deixar de ser.
Celebridades na mira
A exposição de detalhes de sua vida pessoal nas redes sociais faz dos famosos o alvo preferencial dos stalkers, ao reforçar a ilusão de que existe uma proximidade deles com seus seguidores.
SELENA GOMEZ
Atriz, 29 anos
Um homem que se dizia apaixonado revelou planos de assassiná-la. Ele chegou a fazer três viagens para tentar chegar perto dela. Diante do perigo, a Justiça emitiu uma ordem que o obriga a permanecer longe da artista.
JUSTIN BIEBER
Cantor, 28 anos
Um presidiário, fã obcecado, tatuou o rosto de Bieber em sua perna. Sob suspeita depois de uma denúncia de perseguição, confessou à polícia haver contratado um comparsa para castrar e matar o artista.
JENNIFER ANISTON
Atriz, 53 anos
Há anos que uma decisão judicial impede um “admirador” de chegar perto de Jennifer. A ordem foi emitida após o stalker ser detido com uma sacola, um bilhete e um rolo de fita isolante em frente a um local que ele acreditava que a atriz frequentava. O homem admitiu estar em “missão” para encontrar e se casar com a artista.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787