É duro ser uma pessoa negra no Brasil. Desde pequena, sofri toda sorte de discriminação e precisei aprender a ser forte. Mas pensava comigo que a sociedade já teria evoluído quando me tornasse mãe. Não queria que meu filho sentisse na pele a dor do preconceito. A história, porém, tristemente se repetiu, diante dos meus olhos, sem que eu pudesse proteger Kevin, de 7 anos. Ele foi acusado de roubo, sem provas, em uma loja de doces na Zona Leste de São Paulo. Era para ser um dia feliz, em meio aos preparativos para a celebração do aniversário dele. O carrinho estava cheio de doces e ele, todo animado para festejar com os amigos. Na hora de pagar, veio a surpresa: o gerente nos abordou e disse ter visto nas câmeras que meu filho havia roubado e comido dois pacotes de biscoito. Insistiu muito, enquanto Kevin, desesperado, não cansava de falar, com os olhos marejados: “Mamãe, não sou ladrão!”. Nenhuma criança merece passar por aquilo, uma cena que rasga o peito de uma mãe.
Pedi na hora acesso às imagens, e o gerente mudou de discurso. Disse que havia sido um engano e que, na verdade, Kevin não tinha nada a ver com o suposto furto. Desculpou-se, achando que seria suficiente. Mas, dessa vez, passei da tristeza à indignação e decidi agir: gravei ali mesmo um vídeo, que já soma 13 milhões de visualizações, para denunciar o ocorrido. Acionamos a polícia, que demorou quatro horas para chegar. Éramos a única família negra no local e não paro de pensar que, talvez se fôssemos brancos, os agentes teriam respondido a meu chamado com mais presteza. Quando a viatura estacionou, Kevin ficou aterrorizado, achando que seria preso, e falou: “Tio, não fiz nada de errado”. Por sorte, fomos bem atendidos pelos policiais. Recebi todas as orientações para seguir com o caso. A situação, porém, tomou novos contornos na delegacia, onde fomos tratados com descaso. A sensação era de que estavam nos fazendo um favor.
Contratei então um advogado. Só que o crime acabou sendo registrado como calúnia, não racismo, e recomeçamos a queixa do zero. Estava segura: não deixaria o preconceito à sombra, como em outras vezes. A visão depreciativa que ainda recai sobre os negros está entranhada nas mais diversas esferas. Por isso, como mãe, vivo o desafio diário que é criar uma criança preta em nosso país. Desde o berço, alerto Kevin a não tolerar a discriminação. Imagine o que é ter de ensinar a um filho que não pode ser chamado de “macaco”. Ser alvo de preconceito deixa marcas. Elas são invisíveis, mas estão lá e latejam. Depois do dia em que meu menino foi injustamente acusado, parou de querer ir à escola e interagir com as crianças. Antes tagarela e alegre, começou a se fechar em uma tristeza profunda. Agora, está tendo acompanhamento psicológico, assim como meu marido e eu.
E a história continua a nos assombrar. Outro dia, um carro parou em frente à casa do meu pai e uma pessoa gritou, referindo-se ao tal gerente: “Abram os olhos, vocês estão destruindo uma pessoa boa”. Estamos investigando quem está por trás das intimidações e vamos entrar com uma ação contra o estabelecimento. É comum que vítimas se calem, por medo, vergonha, mas quero ser voz ativa contra a intolerância. Ao mesmo tempo, não desejo que a loja seja depredada, como sugeriram nas redes. Não seria justo penalizar os trabalhadores de lá. Apesar de alguns comentários hostis, que fazem pouco caso da minha denúncia, o que senti em maior dose foi uma onda de solidariedade. Empresas me contataram querendo ajudar na comemoração do aniversário de Kevin — que no dia mesmo se limitou a um bolinho, só para não passar em branco — e faremos uma festa em grande estilo. O tema será Pantera Negra, a pedido dele. Desejo mostrar a meu filho que a cor da nossa pele é motivo de orgulho, não de sofrimento. E que há, sim, espaço para ser feliz e comemorar.
Giovanna Oliveira em depoimento a Paula Freitas
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910