Ruídos políticos e gastança perigam ameaçar conquistas de Lula em 2024
Depois das boas notícias de 2023, entre elas as econômicas, são muitas as dúvidas sobre o controle das contas públicas e as disputas no Congresso
O presidente Lula enfrentou um turbilhão entre a sua saída, em 2010, e o seu retorno, em 2023, ao Palácio do Planalto. Nesse período, ele deixou o cargo como recordista de popularidade, elegeu e reelegeu uma neófita como sucessora, fracassou na tentativa de impedir o impeachment de Dilma Rousseff, tornou-se alvo da Lava-Jato, acabou preso por decisão do então juiz Sergio Moro e, da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, viu Jair Bolsonaro chegar à Presidência da República. O petista foi da glória à derrocada num ritmo alucinante — e, depois disso, em outra reviravolta, conseguiu a redenção ao recuperar a liberdade e os direitos políticos, impedir a recondução de Bolsonaro e conquistar seu terceiro mandato presidencial. A vitória nas urnas deu a Lula a oportunidade de escrever o capítulo final de sua biografia. Entre as suas prioridades estão promover um ciclo de crescimento econômico com redução da desigualdade, fortalecer a democracia e barrar a volta da extrema direita ao poder. São objetivos ambiciosos, para os quais foram dados passos importantes neste ano, mas que ainda estão longe de serem alcançados. Como em todo o enredo, o sucesso do protagonista — e também do governo — dependerá de seus próximos passos.
O primeiro grande feito de Lula parece banal, mas não é. Eleito com o apoio de uma frente ampla, o presidente conseguiu restabelecer um clima de estabilidade política no país. Em quatro anos de mandato, seu antecessor Jair Bolsonaro atacou instituições, declarou guerra ao Supremo Tribunal Federal (STF), ameaçou descumprir decisões judiciais, pregou contra o sistema eleitoral brasileiro e até sabotou recomendações sanitárias em plena pandemia. As suspeitas infundadas levantadas pelo capitão sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas ajudaram a incendiar o país, motivaram a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de suspender os seus direitos políticos e serviram de combustível para que radicais bolsonaristas invadissem e depredassem as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Os atos antidemocráticos renderam a abertura de uma investigação no STF, na qual Bolsonaro figura como suspeito de instigar crimes, e permitiram a Lula reunir os chefes dos Poderes, representantes da sociedade civil e até líderes oposicionistas em defesa da democracia. Foi um importante ponto de partida para a pacificação — ou, pelo menos, para redução do clima de beligerância reinante até então.
Hoje, o país continua dividido, mas não há mais ameaças recorrentes às instituições, e a civilidade marca as conversas até entre adversários políticos. Numa cerimônia no Palácio do Planalto na última terça-feira sobre investimentos de bancos públicos nos estados, Lula convidou para discursar Tarcísio Gomes de Freitas, governador de São Paulo, que receberá 10 bilhões de reais para aplicar no setor de transportes, segundo a nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “O presidente me escolheu porque estou levando o maior cheque”, declarou, em tom de brincadeira, Tarcísio, afilhado político de Bolsonaro e um dos principais nomes da oposição. Recorrendo a uma metáfora futebolística, algo que agrada tanto a Bolsonaro quanto a Lula, é como se tivesse saído de campo um jogador que gosta de distribuir caneladas e intimidar o juiz e entrado em seu lugar um que, após um longo período de suspensão, joga na bola e respeita as regras — pelo menos, até aqui. “Depois dos acontecimentos de 8 de janeiro, pode-se dizer que o governo Lula foi capaz, junto com as instituições do estado democrático brasileiro, de impedir uma ruptura. O primeiro aspecto positivo é a defesa das instituições”, diz Alberto Aggio, professor de Ciências Políticas da Unesp.
A retomada da normalidade não livrou o presidente de desafios nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Apesar de os Poderes, segundo a Constituição, serem harmônicos e independentes, Lula apostou numa relação de parceria com alguns ministros do Supremo para deter pautas da direita que tramitam no Congresso, conseguir decisões judiciais favoráveis aos cofres da União e manter Bolsonaro em estado permanente de pressão. De olho nesse tipo de ajuda, o presidente tem ouvido magistrados ao escolher nomes para cargos relevantes de primeiro escalão. Os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, por exemplo, aprovaram as indicações de Flávio Dino para o Supremo e de Paulo Gonet para comandar a Procuradoria-Geral da República (PGR). No campo institucional, Lula representou um avanço sobre Bolsonaro, mas não sem arranhões. Escaldado pelos 580 dias de prisão na Lava-Jato, ele fez duas indicações para o Supremo levando em consideração principalmente o critério da lealdade. Lula cumpriu os requisitos constitucionais, mas buscou antes de qualquer coisa proteção pessoal. Além disso, ao contrário do que ocorreu em seus mandatos anteriores, escolheu para chefiar a PGR um nome que não constava da lista tríplice — de novo, por uma conveniência política.
A estabilidade contribuiu para outro avanço obtido pelo governo. A economia brasileira fechará 2023 melhor do que se imaginava no começo do ano — e aquém do que poderia, não tivesse sido muitas vezes sabotada pelo próprio presidente e seus colegas de partido. O crescimento será de cerca de 3%, ante estimativas iniciais de 1%. A inflação ficará dentro da meta estabelecida pelo Banco Central. O desemprego está em queda. Mudanças estruturantes avançaram, como o novo marco fiscal e a reforma tributária. Escalado para o Ministério da Fazenda, Fernando Haddad conseguiu angariar prestígio e credibilidade entre atores importantes do PIB que duvidavam de sua força para manter uma política econômica responsável. Haddad, por sinal, é protagonista e peça-chave no destino da atual gestão, principalmente no próximo ano. A depender do trabalho dele, de sua capacidade de resistir ao fogo amigo e de convencer diferentes setores, a balança da política econômica penderá ou para a gastança, ou para a austeridade, ou encontrará um necessário ponto de equilíbrio. É uma equação complicada tanto no aspecto econômico quanto no político.
Apesar da pressão de petistas e de colegas de governo, o ministro convenceu Lula a não mudar por enquanto a meta de déficit zero em 2024, sob a alegação de que, antes de revisar esse objetivo, é preciso saber quanto o governo arrecadará no próximo ano. Mas, mesmo com a aprovação no Congresso de projetos que podem gerar uma receita extra de 45 bilhões de reais, Haddad terá dificuldade para manter a meta de déficit zero. O motivo é simples: ela só será alcançada com corte de gastos no ano que vem. Projeções dão conta de uma tesourada entre 25 bilhões e 55 bilhões de reais, que poderia afetar investimentos em saúde, educação e no novo PAC. Lula, o chefe da Casa Civil, Rui Costa, e a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, já deixaram claro que não concordam com isso. Preferem mudar a meta para permitir mais gastos — e, consequentemente, mais endividamento — num ano de eleição municipal.
Alguns petistas, quando o assunto é aumentar o gasto público, preferem lançar mão de escaramuças retóricas para esconder suas reais intenções. Não é o caso do líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE). Mais sincero que muitos de seus companheiros, ele afirmou recentemente que, se preciso, haverá, sim, déficit no orçamento do ano que vem. E por quê? A meta de zerar o rombo das contas públicas, segundo ele, pode levar o PT a colher maus resultados nas eleições municipais. “Se tiver que fazer déficit, nós vamos ter que fazer. Senão, a gente não ganha a eleição em 2024”, disse o parlamentar sem meias-palavras, durante a conferência eleitoral que o partido realizou no último fim de semana. Guimarães, assim como Gleisi Hoffmann, não emite apenas uma opinião pessoal. A intenção de sabotar o esforço de Haddad para equilibrar as contas tem a simpatia do próprio presidente da República. “Se for necessário este país fazer endividamento para crescer, qual o problema?”, perguntou Lula na terça-feira 12, durante uma reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no Palácio do Planalto. Sua antecessora Dilma Rousseff, que legou uma recessão histórica ao país, sabe a resposta.
Dias antes, um documento oficial do PT já havia retomado a pressão sobre Haddad, apesar de não criticá-lo diretamente. “Não faz nenhum sentido, neste cenário, a pressão por arrocho fiscal exercida pelo comando do Banco Central, rentistas e seus porta-vozes na mídia e no mercado. O Brasil precisa se libertar, urgentemente, da ditadura do BC independente e do austericídio fiscal ou não teremos como responder às necessidades do país.” Não é um embate qualquer. Aos trancos e barrancos, o ministro conseguiu melhorar a percepção sobre o ambiente econômico e uma série de indicadores que afetam o bolso dos brasileiros, mas dados recentes mostram perda de fôlego da economia. No começo de 2024, o PIB tende a andar mais devagar e, por isso, deve aumentar a pressão de Lula, Rui Costa e companhia para que Haddad solte a rédea dos gastos. A forma como o governo lidará com o fantasma do “pibinho” é uma das principais incógnitas do próximo ano e terá impacto não apenas no curto prazo.
Outra dúvida, igualmente relevante, diz respeito à relação com o Congresso. Em 2022, o PT e os partidos de esquerda elegeram bancadas minoritárias na Câmara. Para construir maiorias em um Congresso controlado atualmente pela centro-direita, Lula usou sua habilidade para negociar uma aliança com legendas de centro, como MDB e PSD, e com dois alvos preferenciais de suas críticas durante a campanha: o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o bloco controlado por ele, o notório Centrão. Recentemente, o presidente abriu espaço no ministério para Republicanos e Progressistas, que apoiaram Bolsonaro na administração passada, e ainda entregou o comando da Caixa a um afilhado político de Lira. O problema é a forma como muitas dessas negociações têm sido realizadas. Em seu terceiro mandato, Lula jura que não pratica o toma lá dá cá, mas continua refém da lógica segundo a qual só contrapartidas generosas garantem votos favoráveis nos plenários da Câmara e do Senado. Em outra área sensível, o presidente conseguiu avançar com menos sobressaltos.
Lula priorizou em 2023 a reinserção do Brasil no cenário global. O presidente visitou mais de vinte países, participou de encontros multilaterais, fechou acordos de cooperação e tentou mediar negociações de paz. Apesar de tropeços diplomáticos, como emprestar apoio ao ditador venezuelano Nicolás Maduro e dar declarações desastradas sobre os conflitos entre Ucrânia e Rússia e Israel e Hamas, o petista retomou relações que estavam estremecidas e, na prática, fez o país voltar ao jogo. Não foi em grande estilo, mas Lula, como de costume, se beneficia da comparação com Bolsonaro, cuja gestão se gabava de ser pária internacional. “O Brasil teve uma atuação anêmica no cenário internacional durante o governo passado. Já Lula tem se empenhado em colocar o país nas principais mesas de negociação. A pauta internacional é dominada pela agenda ESG, em que a questão ambiental tem a maior relevância. Ao retomar o protagonismo nessa questão, o Brasil volta a ser visto com bons olhos, o que pode gerar novas oportunidades de cooperação e investimento”, diz Fernando Guarnieri, professor de Ciências Políticas da Uerj.
Pouco mais de um ano após as eleições mais disputadas desde a redemocratização, o país continua dividido entre bolsonaristas, petistas e eleitores moderados que, ao pender para um lado ou outro, continuam a ser decisivos. Segundo pesquisa Datafolha divulgada no início de dezembro, a avaliação do governo se manteve estável ao longo do ano. Do total de entrevistados, 38% consideram a gestão Lula ótima ou boa, 30% avaliam como regular e outros 30% como ruim ou péssima. O presidente está distante dos mais de 80% de aprovação que tinha ao concluir seu segundo mandato e ainda tem que lidar com a força da direita nas ruas e no Congresso. Seus auxiliares querem que a máquina pública rode com mais velocidade e dizem que falta uma marca popular para este terceiro mandato, como já foi o Bolsa Família no passado. Pregações como essa, especialmente às vésperas de eleição, dão margem a ideias mirabolantes, causam ansiedade e apreensão e podem acabar num belo presente de grego. É tudo que o Brasil definitivamente não precisa no próximo ano.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872