Lição número 1 sobre água própria para o consumo humano: ela deve ser insípida, inodora e incolor. Pois o líquido consumido desde a virada do ano por uma parcela dos cariocas está longe, muito longe de se encaixar na definição. Em pleno verão, época em que sem água em abundância não dá para sobreviver ao sufoco produzido pelos termômetros além dos 40 graus, ela deu de aparecer turva e com cheiro e gosto que, a depender de quem prova, oscilam entre terra e barro. Como resultado, a estação em que modismos brotam quase por geração espontânea nas areias e o Rio de Janeiro resplandece será lembrada neste 2020 por um termo que soa como palavrão — geosmina, a substância produzida por bactérias que é responsável pela indesejável alteração de odor e sabor. A mudança de cor segue envolta em mistério.
Fosse o problema localizado, ele entraria no rol dos percalços usuais registrados no abastecimento de água no Rio. Mas não é. O maltratado sistema da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), dos anos 1950, dá defeito ora por seus canos enferrujados, ora por vazamentos, mas poucas vezes resultou em uma crise que atingisse tanta gente ao mesmo tempo: 71 bairros — praticamente a metade da cidade — mais seis municípios no cinturão metropolitano. “Agora uso água mineral para tudo: beber, escovar os dentes, cozinhar”, diz a administradora de empresas Priscilla Cardoso, que mora no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste. A corrida por água mineral, aliás, ganhou contornos surrealistas. A demanda subiu 30% em relação ao último verão e, em vários estabelecimentos, a garrafa de 510 mililitros, que saía a 2 reais, está custando 4 reais, isso quando há. “Um único cliente compra hoje a quantidade que eu vendia em um dia inteiro. Não tem estoque que dê vazão”, diz o gerente de um supermercado da Zona Sul.
As imagens aéreas do Rio Guandu e de seus afluentes (fonte do abastecimento) ajudam a entender o drama que desemboca no copo do carioca. No lugar de ser cristalina, a água surge esverdeada, devido à presença de algas e bactérias, e marrom, produto da sujeira despejada ali todos os dias. Recente levantamento do Instituto Trata Brasil, especializado em saneamento, mostra que 65% do esgoto da região metropolitana do Rio não é tratado — estágio em que grandes cidades do mundo se encontravam no século XIX. Isso exige altas doses de química para que a água fique potável. Houve até especulações de que a famigerada geosmina viria das tais algas, mas está claro que ela é subproduto da ação de microrganismos que proliferam em ambientes poluídos, como o Rio Guandu.
Constam relatos de gente com enjoo, vômito e diarreia depois de ingerir a água turva. “A geosmina não é tóxica, mas, onde aparece, indica alta concentração de bactérias — e aí está o problema”, esclarece a bióloga Sandra Azevedo. Testes têm sido feitos pela Cedae, e a polícia investiga o caso. Até agora a população não ouviu muito além de especulações como a do governador Wilson Witzel. “Foi sabotagem”, disse ele, sem provas. A Cedae promete que o reservatório passará por filtro à base de carvão ativado para neutralizar a geosmina — a versão doméstica do equipamento também é recomendada. Trata-se de um paliativo diante do desafio maior de garantir água boa e farta nos verões que vêm por aí.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671