Na madrugada do dia 5 janeiro, o policial militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos, participava de uma perseguição a dois suspeitos de roubo em um bairro de Belo Horizonte quando levou dois tiros fatais na cabeça, disparados à queima-roupa. O suspeito é um homem que já estava preso, mas gozava do direito à saída temporária concedida no feriado do Natal e não havia retornado à prisão, como previsto. Sua ficha possui ao menos dezoito registros de passagem por delegacias por roubo, falsidade ideológica, receptação, tráfico de drogas e ameaças, segundo a PM-MG. O crime indignou parte da população, virou um dos temas mais comentados nas redes sociais e provocou a reação da classe política. O brutal assassinato reacendeu o debate sobre as chamadas “saidinhas” e deu força aos projetos no Congresso que propõem o recrudescimento da lei e a extinção desse direito.
A maior repercussão partiu de representantes da direita bolsonarista, interessados no voto conservador, mas também arrastou para o debate pesos pesados da política nacional. Logo após o crime, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, que é de Minas Gerais, afirmou que se comprometeria a dar andamento ao projeto que propõe a extinção das saídas temporárias. O movimento atraiu governadores de estados importantes, como Tarcísio de Freitas (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais) e Ronaldo Caiado (Goiás), que prometem uma articulação conjunta para pressionar os parlamentares a aprovar a matéria logo no retorno do recesso.
Embora debates sobre esse tipo de tema possam ser desvirtuados em razão da brutalidade do evento e do apelo populista da pauta, a chance de haver alguma mudança na lei é real. No Congresso, dois projetos tramitam simultaneamente. O mais avançado é o PL 2253/22, do deputado Pedro Paulo (MDB-RJ), que já passou na Câmara e está pronto para ser votado na Comissão de Segurança Pública do Senado, com parecer favorável do relator, Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Na Câmara, o PL do deputado Bibo Nunes (PL-RS) foi aprovado na Comissão de Segurança Pública em novembro e aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça. “Não dá para o criminoso ter mais de um mês de descanso enquanto o cidadão de bem só tem trinta dias de férias”, diz Nunes. Ele se refere, acertadamente, ao dispositivo na lei que prevê até cinco “saidinhas” de sete dias por ano.
O benefício, apesar de toda a (justa) polêmica, atinge pouca gente. Ele só alcança presos que já estão em regime semiaberto — que saem para trabalhar e estudar e voltam à noite —, que têm bom comportamento e um sexto da pena cumprida (veja o quadro). Dados do Departamento Penitenciário Nacional apontam que historicamente é baixa a quantidade de presos que não retornam. De janeiro a junho de 2023, o índice ficou em 6,3% Quem defende a manutenção do benefício argumenta que ele é importante para a reintegração gradativa de presos ao convívio familiar e à sociedade e que casos como o que vitimou o policial mineiro são exceções. “Sempre que acontece algum crime envolvendo preso que não retornou da ‘saidinha’, o Parlamento responde com leis mais duras”, diz o sociólogo Luis Flávio Sapori, professor da PUC Minas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É a legislação do pânico, mas a contribuição das saídas temporárias para o processo de reinserção social de presos é inegável.”
A questão é que, de fato, alguma mudança precisa ser introduzida. As “exceções”, muitas vezes, significam vidas perdidas e reforço para o crime organizado. Mesmo entre os partidários da manutenção do benefício, há quem considere necessário algum ajuste na Lei de Execução Penal, assinada em 1984 pelo presidente João Figueiredo. A Secretaria Nacional de Políticas Penais sugere que a decisão pela concessão seja colegiada e que integrantes de organizações criminosas sejam excluídos do rol de presos que têm direito a saídas temporárias — finalmente, um sopro de sabedoria. A ideia é evitar o que ocorreu no Rio, quando dois homens apontados como líderes do Comando Vermelho não retornaram após receberem o benefício pela primeira vez, no último Natal.
O debate avança em meio à crescente sensação de insegurança no país. Pesquisa da Quaest de novembro apontou que oito em cada dez brasileiros avaliam que o quadro piorou nos últimos doze meses, início do terceiro mandato de Lula. Na quarta 31, ao formalizar a troca de Flávio Dino por Ricardo Lewandowski no Ministério da Justiça, o presidente disse que o crime organizado se tornou uma indústria maior que a General Motors, a Volkswagen e a Petrobras e prometeu que iria “jogar muito pesado”. Dentro desse clima, a movimentação política faz algum sentido — na mesma sondagem, 93% concordaram que a solução para a violência é “punir com leis mais rígidas”. O tema, no entanto, merece um debate aprofundado e desprovido de pretensões eleitoreiras, de forma a se chegar a uma solução equilibrada. A necessária reinserção humanizada de presos precisa ser feita de forma criteriosa e segura para o restante da sociedade.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878