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“Quase morri por ser negro”, diz homem acusado de roubar o próprio carro

O recepcionista Gabriel Nascimento, 23 anos, fala do dia em que foi espancado ao entrar no seu automóvel

Por Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 12h18 - Publicado em 22 jan 2022, 08h00

Tinha marcado uma viagem com amigos a uma cidade distante. Era um sábado e, tão logo amanheceu, fui verificar meu carro, para ver se estava tudo certo para pegar a estrada. Enquanto dava uma olhada no motor, na gasolina, no painel, um casal branco se aproximou, questionando o que eu estava fazendo ali. Desconfiaram abertamente de mim, sugerindo que eu ia roubar o veículo. Tentei argumentar, mostrar os documentos, mas de nada adiantou. Não me ouviram. O mais estranho é que eu conhecia a mulher. Ela tem casa no meu condomínio e nos esbarrávamos de vez em quando, sempre trocando cumprimentos cordiais. Naquela hora, parece que ela não me reconheceu e pensou o que muita gente pensa. Viu um homem negro mexendo em um carro e concluiu: “É ladrão!”. O absurdo não parou por aí, e a violência foi escalando de forma assustadora. O casal começou a gritar, a disparar acusações de roubo e a me empurrar com força. Fui jogado no chão, levei chutes por todo o corpo, até que o homem tentou me estrangular, me sufocando com o joelho.

Fiquei sem ar e achei que não fosse aguentar. Entrei em desespero. Aos poucos, fui perdendo a consciência e quase apaguei. Por um milagre, um vizinho apareceu bem na hora e chamou a atenção da dupla, que parou com a selvageria. A mulher ainda tentou inventar desculpas para se defender, depois de perceber o inaceitável do que havia feito. O homem desapareceu. Felizmente, tudo foi captado pelas câmeras de segurança do condomínio. No mesmo sábado, fui à delegacia fazer um boletim de ocorrência. Tentei três vezes, mas, como o sistema estava fora do ar, parti para o hospital para tratar os ferimentos. Estava dolorido, sangrando, com muitas marcas no corpo. O médico prescreveu anti-inflamatórios e me deu uma série de orientações para cuidar das feridas dali em diante, que sigo até hoje. Uns dias depois, consegui registrar o caso na polícia.

O Brasil é um país racista. Como negro, ao longo da vida fui alvo de um preconceito aqui, outro ali, ainda que velado, expresso em olhares e gestos. Mas a gente nunca imagina que vai sofrer uma violência dessa magnitude, muito menos na porta de casa. Desde o ataque, minha vida está completamente revirada. E eu, a própria vítima, estou sofrendo as consequências e pagando um preço bastante alto. Decidi me mudar de prédio para me proteger de possíveis represálias de pessoas incomodadas com toda a história, que podem ainda sair em defesa do casal. Não sei o que os agressores são capazes de fazer. Açailândia, no Maranhão, onde moro, é cidade pequena. Não vou mais a qualquer lugar com a tranquilidade de antes. Preciso zelar pela minha segurança. Denunciar é um desgaste, mas resolvi ir em frente para mostrar que o racismo não pode ser tolerado.

Esse caso fez nascer em mim a vontade de ingressar em uma faculdade de direito. Eu me revolto com a injustiça, a falta de punição para determinados crimes em nosso país. Espero que este seja tratado com a devida firmeza. Além das marcas físicas, a violência embutida no racismo deixa traumas psicológicos difíceis de serem reparados. Tento não pensar muito sobre a brutalidade da qual fui alvo. É duro demais. Fiquei tão anestesiado com o surreal da situação que apaguei os detalhes da cabeça. Sei que algumas passagens aconteceram só porque vi no vídeo, não porque as guardei na memória. Recebi apoio de todos os lados, muitas mensagens nas redes sociais, o que vejo como um sinal de avanço. Passadas algumas semanas, ainda sinto dores na perna, nos dedos das mãos, mas valorizo todos os dias ter sobrevivido à explosiva mistura de insanidade e preconceito.

Gabriel Nascimento em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros

Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773

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