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Procura-se: vergonha

A falta de verdade, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico da vida democrática

Por Roberto Romano*
Atualizado em 21 dez 2018, 07h00 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00

Uma frase sempre vem aos lábios dos brasileiros deseducados, truculentos, egoístas e malandros quando postos em situação difícil de ser resolvida corretamente. Fulano ou fulana fura a fila do banco ostentando ares de superioridade, vê-se repelido pelos que exigem seus direitos e pode até não falar mas pensa: “O Brasil é assim mesmo”. Várias sandices estão reunidas aí, nessa lógica distorcida. Com ela, o inefável tolo quer dizer que ele, isso mesmo, o ser muito importante que está acima dos outros, não tem laços com a cultura de seu povo. A plebe não viaja para Nova York, Paris, Londres ou Roma. Logo, ela não percebe quão sublime é o personagem que reivindica o privilégio de romper normas comezinhas de civilidade, como respeitar o próximo, os lugares na fila e a vaga no estacionamento, entre muitas outras. Se topa com alguém que aponta sua falta de educação, o ser superior apela: “Que gente chata!”. E acabou, tudo se resolveu. Trata-se daquela finura de comportamento que espelha o gosto estabelecido. Tais indivíduos são finos em demasia, tomam champanhe com linguiça. “O Brasil é assim mesmo.”

Estacionou na vaga dos deficientes físicos? No worry! “Ficarei apenas uns minutinhos e já volto.” Berra nos restaurantes, gargalha a ponto de impedir a refeição alheia? Sem problema: os demais clientes que se danem, “quero ser feliz com os meus amigos e colegas”. Para na fila dupla quando leva os pimpolhos ao colégio? “O trânsito brasileiro é primitivo, insuportável.” Empurra um desprevenido no corredor do shopping center? “Desculpa, eu não vi.” Nem sequer desconfia o truculento que a segunda pessoa do singular é uma forma lastimável de desrespeito. E ademais o “não vi” prova uma inconsciência total no campo ético. Quando alguém se move no espaço público, o ético, o moral, o polido é ver o corpo alheio, tomar cuidado para não ferir.

Na sociedade brasileira, condutas perniciosas de indivíduos e grupos são herança do que havia de pior no regime absolutista que regeu nossa história colonial. Os portugueses entram no cômputo dos povos europeus que sofreram, durante séculos, a centralização do poder nas mãos do rei. Aquela política repousava em alguns elementos estratégicos. Para dobrar a espinha de sacerdotes e nobres, o rei lhes distribuía favores, dava-lhes isenção de impostos, títulos, subvenções, cargos. Sem tal partilha, ou ele era assassinado, ou não conseguia governar. Para obterem os favores do rei, as “elites”, por sua vez, precisavam apelar para intermediários entre elas e o trono. Na indicação de um cargo, o rei pagava favores para, em troca, ganhar o favor da governabilidade. Nobres e o clero, por seu lado, pagavam favores aos intermediários e ao rei. Trata-se de um circuito poderoso cuja moeda é a bajulação universal, a compra e venda corrupta de favorecimentos.

“Condutas perniciosas são herança do que havia de pior no regime absolutista que regeu nossa história colonial”

Historiadores apontam na sociedade absolutista um dos regimes mais corrompidos da saga humana. No Antigo Regime tudo se comprava, tudo se vendia, tudo se obtinha com a prestação de favores tanto aos indivíduos no mesmo nível social e político quanto aos “superiores”, que facilitavam a outorga de empregos e recursos. A sociedade absolutista era um tecido muito denso no qual dominava o favor. O indivíduo se rebaixava diante de alguém mais importante e pisava na garganta de quem estava abaixo de sua posição.

Ocorre que a covardia subserviente se transforma, conforme a situação, em covardia arrogante. Assim foi gerada boa parte das elites do Antigo Regime, a cuja reiteração imaginária assistimos hoje quando o fulano pergunta, cheio da pior empáfia: “Sabe com quem está falando?”. Em terras polidas e cultas, a pergunta, em situações tensas e similares, é o contrário: “Quem você pensa que é?”. Ou seja, a igualdade no trato não pode ser quebrada, salvo em caso de vácua pretensão, por ninguém. Mas no Brasil o favor garante que o bajulador se apresente como tirano, se imagine estar diante de alguém inferior, “diferenciado”.

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Não causa nenhuma surpresa que, já na carta em que Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal a descoberta do Brasil, cargos sejam pedidos humildemente como favor, em prol de parentes. E temos aí a forma pela qual foi moldada a sociedade brasileira. A prática do favor, a reivindicação de “superioridade” sobre quem não é nobre, rico ou padre, propiciou a formação de um coletivo sem a noção mínima da igualdade republicana. Como dizia o padre Antônio Vieira, os brasileiros não são “repúblicos”. Ao contrário do povo inglês, do francês e do americano, não praticamos as virtudes da responsabilidade diante do povo (accountability) e a igualdade política. Na Revolução Puritana do século XVII, que instaurou a monarquia constitucional na Inglaterra, o partido mais importante tinha como nome e slogan o termo levellers, ou seja, niveladores, anuladores das diferenças. No Brasil, os igualitários sempre foram vencidos pelo Estado e a vitória coube aos que beijam os pés dos governantes e insultam os vencidos. Gerou-se em 500 anos uma noção de elite sem paralelo nos centros civilizados.

Aqui, mesmo nos dias de hoje, vivemos como se estivéssemos no Antigo Regime. Os cargos nas empresas públicas e privadas são distribuídos segundo padrões do favor político, ideológico ou religioso. É a regra do “quem indica”. Sob o império do favor, indivíduos e grupos agem como se fossem melhores do que os “simples pagantes de imposto”. Ou, na linguagem de dom João VI, “a gente ordinária de vestes”. Daí o sentimento de impunidade nos setores que, por estarem em posições de poder ou prestígio, usam a famosa carteirada (em duplo sentido: cargos e bolsos repletos) para negar direitos aos cidadãos. Quanto mais grosseiros e injustos, mais autorizados se sentem a romper o contrato social.

Na cidade de Atenas, onde se definiu a composição mais relevante da ordem democrática, algumas leis foram estratégicas nessa empreitada. A primeira tratava da responsabilidade nos serviços públicos. Só podiam ser eleitos aqueles que provavam por exame (Dokimasia) a posse de saber técnico e prudência ética para os cargos. Se no Brasil de hoje tal princípio vigorasse, muitos que se imaginam de elite estariam sem emprego. Outra lei essencial era a da Hybris (orgulho desmedido, arrogância). Um indivíduo mais bem aquinhoado pela sorte que humilhasse outro com menores recursos recebia penalidades físicas ou pecuniárias. Se aqui tivéssemos algo similar, os cofres públicos estariam abarrotados. A falta de respeito impera em nosso meio. Como o ser humano é mimético, costumes grosseiros se espalharam pelo corpo social. Não apenas a elite, mas também vastas camadas populares reiteram, sem nenhum recato, formas brutais de comportamento.

“A falta de respeito impera em nosso meio e os costumes grosseiros se espalham pelo corpo social”

Por último, em Atenas uma forma de ser era fundamental: o indivíduo ganhava valor se manifestasse um sentimento de vergonha por atitudes incorretas. Faltar com o respeito aos idosos, às mulheres e crianças, aos mais fracos, era visto como uma indignidade sem tamanho. Quem não se ruborizasse por ter insultado algum concidadão deixava de ser um animal político e se transformava simplesmente em um animal. O termo Aidós (“vergonha”, “respeito”, “reverência”) servia para discernir quem era honesto e quem não merecia acatamento social e político. Em suma: entre as qualidades atenienses que fizeram a glória da pólis democrática, talvez a que mais faça falta ao Brasil seja a vergonha. Pensadores e políticos realistas, os atenienses democráticos sabiam que é impossível manter um coletivo unido se não há equilíbrio entre honra e pudor.

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Antes de encerrar, ressalte-se ainda outra lei ateniense, a que dizia ser proibido mentir ao povo. No livro Deception and Democracy in Classical Athens (Mentira e Democracia na Atenas Clássica), o historiador inglês Jon Hesk observa que, em Atenas, a honra política era interligada a um permanente respeito à verdade. Aristófanes e Platão caçoaram em muitas ocasiões dos demagogos que, levados pela sofística, prometiam mundos e fundos nos debates eleitorais. A falta de verdade, o uso da mentira deslavada, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico e ridículo da vida democrática.

A honra traz a fé pública, condição da efetiva estabilidade econômica e política. A lógica de tal aporia é tirada por Santo Agostinho: sem a justiça e a vergonha, os Estados não passam de grandes quadrilhas. E as quadrilhas formam pequenos Estados. O Brasil que decida: seguirá a honra e a vergonha ou ficará na lama, reclamando da corrupção alheia? A imagem que muitos brasileiros fazem de si mesmos é a de espertalhões que podem enganar os incautos. O “jeitinho” presente nos fura-filas, nos usurpadores de vaga no estacionamento e nos que mentem em público e no privado reitera uma sociedade cuja ética é tortuosa e beira o desastre. Não é possível ter bons governos com uma cidadania que ignora seus deveres. E assim caminha este país, de esperteza a esperteza, rumo ao desalento ressentido de todos contra todos. “O Brasil é assim mesmo…”

* O filósofo Roberto Romano é professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Caldeirão de Medeia e Moral e Ciência: a Monstruosidade do Século XVIII, entre outras obras

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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