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Populismo e futricas políticas: por que Lula sabotou o plano de Haddad

Interesses eleitoreiros estão na raiz das decisões equivocadas que levam o governo a desperdiçar mais uma oportunidade de arrumar a casa na economia

Por Daniel Pereira Atualizado em 10 nov 2023, 10h03 - Publicado em 10 nov 2023, 06h00

O ministro Fernando Haddad assumiu a Fazenda sob forte desconfiança. Empresários e banqueiros tinham dúvidas sobre qual caminho ele seguiria na condução da economia: o do primeiro mandato de Lula, marcado pela responsabilidade fiscal, ou o da gestão Dilma Rousseff, que legou ao país uma recessão histórica. No PT, certas estrelas também torciam o nariz para o ministro, com quem disputavam — e ainda disputam — poder e influência na definição da política econômica. Na própria frente ampla que ajudou a eleger Lula havia o temor de que Haddad não resistiria à pressão e ao fogo amigo. Apesar de ter sido derrotado logo no primeiro ato do governo, que decidiu por conveniência política adiar por alguns meses a reoneração dos combustíveis, o chefe da equipe econômica conseguiu mostrar força, ganhar prestígio e, principalmente, desanuviar o ambiente econômico. Pautas prioritárias avançaram no Congresso, índices de inflação e emprego melhoraram, e o ministro manteve firme o compromisso de zelar pelas contas públicas. A situação parecia bem encaminhada até que Lula resolveu sabotar os esforços do auxiliar.

Dando voz à ala política de sua administração, o presidente disse num café da manhã com jornalistas que a meta de zerar o déficit primário em 2024, defendida por Haddad, dificilmente seria alcançada. Na ocasião, acrescentou não estar disposto a cortar investimentos para garantir o cumprimento do objetivo definido por seu ministro. A declaração, obviamente, fragilizou a posição de Haddad, que já enfrentava nos bastidores a oposição do chefe da Casa Civil, Rui Costa, e da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, para quem a meta deveria ser alterada a fim de prever um déficit de 0,5% e, assim, permitir mais gastos. Com a queda de braço em curso, Lula disparou novamente contra Haddad e instou ministros da área da infraestrutura a serem “os melhores gastadores de dinheiro em obra”. “Eu sempre digo que, para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro que está no Tesouro. Para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obra”, afirmou o presidente. Haddad estava na reunião, mas não se rendeu.

Enquanto Rui Costa defendia que o governo propusesse o relaxamento da meta já na votação do relatório preliminar da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), ocorrida na última terça-feira, o ministro da Fazenda conseguiu convencer Lula a adiar a definição sobre o tema. O martelo deve ser batido nos próximos dias, levando em consideração não apenas a situação fiscal do país, que deveria ser preponderante no debate, mas as conveniências políticas do presidente, do PT, de ministros e de parlamentares. Os adversários de Haddad alegam que a equipe econômica não conseguirá arrumar cerca de 170 bilhões de reais de arrecadação extra para zerar o déficit e que, em razão disso, é melhor afrouxar a meta e elaborar um Orçamento mais realista. Na prática, a preocupação é outra. Lula não quer ser obrigado no ano que vem, quando serão disputadas as eleições municipais, a bloquear pelo menos uns 40 bilhões de reais do Orçamento da União para que a meta de déficit zero seja cumprida. Essa iniciativa, segundo o presidente, drenaria recursos do Programa de Aceleração do Crescimento e da área da saúde, além de votos nas urnas.

DIREÇÃO ERRADA - Congresso: a sinalização emitida pelo governo encontra respaldo no interesse dos parlamentares em aumentar gastos em ano eleitoral
DIREÇÃO ERRADA - Congresso: a sinalização emitida pelo governo encontra respaldo no interesse dos parlamentares em aumentar gastos em ano eleitoral (Geraldo Magela/Agência Senado)

Apesar de os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, terem se manifestado a favor do plano de Haddad, o grosso dos parlamentares faz coro a favor do abrandamento da meta. Como o presidente da República, eles também querem mais dinheiro para gastar em 2024. Uma das prioridades dos congressistas é aumentar o valor do fundo eleitoral proposto pela Fazenda para 2024 — de pouco mais de 900 milhões de reais. Os parlamentares aventaram no início algo em torno de 6 bilhões, mas agora, como se estivessem fazendo uma grande concessão, trabalham com a cifra de 4,9 bilhões de reais, a mesma destinada para as eleições gerais de 2022. O PT de Lula e o PL de Jair Bolsonaro estão juntos nessa cruzada, num sinal de que a polarização, quando convém, pode dar lugar à comunhão de interesses. Outro objetivo é ampliar a cota das emendas. Deputados e senadores querem retomar o controle sobre 9,2 bilhões de reais do antigo orçamento secreto, que hoje estão nas mãos dos ministérios, e obrigar o governo a pagar — queira ou não queira — as emendas de comissão, que somam 7,5 bilhões no Orçamento de 2023.

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Hoje, apenas as emendas individuais e de bancada já são impositivas (de pagamento obrigatório). Há dez anos, nenhuma delas era, o que evidencia como o Congresso ganhou força e avançou sobre fatias orçamentárias cada vez maiores. Haddad não quer comprar briga com os parlamentares, que, em troca de generosas contrapartidas, têm votado propostas estruturantes, inclusive a reforma tributária. O verdadeiro embate do ministro é interno, dentro do governo, contra o populismo e a ideia — já testada e reprovada — de que o gasto público deve ser o principal indutor do crescimento. Acossado em múltiplas frentes, o ministro sabe da dificuldade de zerar o déficit em 2024, mas mantém a meta para conter a ofensiva por mais despesas e não atrapalhar os esforços de sua equipe pela aprovação de projetos capazes de aumentar a arrecadação no próximo ano. Ele lida com números e expectativas — e, de certa forma, tem a seu favor um pequeno capítulo da história recente do país. Nos últimos anos, ministros da Fazenda foram decisivos para o sucesso ou o fracasso de governos e de seus respectivos grupos políticos.

Embalado pelo Plano Real, Fernando Henrique Cardoso saltou da Fazenda para dois mandatos presidenciais. A austeridade fiscal de Antonio Palocci, elogiada até pela oposição, ajudou na conturbada governabilidade do primeiro mandato de Lula, marcado pelo escândalo do mensalão. Já Guido Mantega foi protagonista da derrocada econômica protagonizada por Dilma Rousseff. Em seu terceiro mandato, Lula conhece bem os diferentes caminhos, o da gastança desenfreada e o da responsabilidade fiscal. Sabotar seu próprio ministro, além de ser um desserviço ao país, pode ser um sonoro tiro no pé até em termos eleitorais. Basta olhar no retrovisor.

Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867

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