Em agosto do ano passado, às vésperas de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), desdenhava quando ouvia rumores de que a democracia estava sob ameaça. Embora já tivesse enfrentado toda sorte de provocações de Jair Bolsonaro e dos principais apoiadores dele, que o acusavam, entre outras coisas, de extrapolar as funções e impedir o ex-presidente de governar, Moraes justificava seu diagnóstico ressaltando que os insufladores de turno falavam sem conhecimento de causa — não haviam vivido os rigores de uma ditadura, por exemplo — e que nem as polícias nem a cúpula do Exército topariam encampar uma aventura extremista. Àquela altura, dizia, faltava uma evidência concreta do golpismo, um selo de que setores da República conspiravam para ignorar o resultado das eleições e manter Bolsonaro no poder à força. A convicção do juiz foi mudando rapidamente diante das críticas difundidas em relação à segurança das urnas eletrônicas, do apoio de setores militares a teorias conspiratórias que inundaram as redes sociais antes, durante e depois das eleições e, principalmente, após os ataques do dia 8 de janeiro.
O ministro hoje não tem dúvida de que a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal foi a senha de início de um plano golpista. Oito meses depois dos ataques, os responsáveis começaram a ser julgados nos processos que foram conduzidos pelo próprio Alexandre de Moraes — e estão sendo punidos severamente. O primeiro deles, o técnico em saneamento Aécio Lúcio Costa Pereira, foi condenado a dezessete anos de prisão. Em imagens coletadas pela polícia, ele aparece ao lado da mesa da presidência do Senado vestindo uma camiseta com a estampa “intervenção militar federal” e achincalhando o Congresso. Outros dois acusados já receberam sentenças que variam entre catorze e dezessete anos de cadeia por associação criminosa armada, abolição violenta do estado democrático de direito, tentativa de golpe, dano qualificado, deterioração do patrimônio público e ameaça. As penas — duríssimas — foram interpretadas pela defesa de alguns dos investigados como um prenúncio.
Além de sentenciar os demais 1 342 réus “executores” da tentativa de golpe, o STF vai concluir a investigação e levar a julgamento os processos que envolvem o chamado escalão intermediário da trama, ou seja, aqueles personagens que teriam planejado, financiado ou colaborado intencionalmente para os ataques do dia 8 de janeiro. Nesse rol estão figuras como o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente, o delegado Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, e Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, e não é segredo para ninguém que Alexandre de Moraes tem a convicção de que na ponta do esquema, no comando de tudo, está o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Faz sentido que certas autoridades estejam preocupadas porque elas tinham por dever da função e do cargo zelar pela manutenção do estado democrático de direito, pela correção nas eleições”, afirma a professora de direito penal da Universidade de São Paulo Helena Lobo.
Bolsonaro, que nunca reconheceu formalmente a derrota nas urnas nem atuou para demover movimentos que incitavam um golpe, estava nos Estados Unidos em janeiro. Dois dias depois dos ataques, compartilhou — e na sequência apagou — um vídeo em que atacava o Judiciário e questionava a vitória de Lula. Contra ele pesa o que o ministro do STF classifica como “partícipe por instigação”. Na audiência de instrução do processo de Aécio Pereira, a juíza auxiliar de Moraes leu um roteiro de perguntas ao réu que, somadas, reforçam a convicção dos investigados de que o cerco contra o ex-presidente está se fechando de forma rápida. Entre outros questionamentos, a magistrada explorou as suspeitas de complacência das forças policiais com os manifestantes, os indícios de financiamento dos protestos e os objetivos dos baderneiros de tolher os poderes da República.
Foi um conjunto de quatro tópicos, porém, que acendeu o sinal de alerta no núcleo mais próximo do ex-presidente: “Você acredita nas afirmações do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro sobre a ocorrência de fraude nas urnas e nas eleições? Isso colaborou para sua ida a Brasília e à marcha até à praça dos Três Poderes? Você queria a queda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o retorno do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro? Se o ex-presidente Jair Bolsonaro tivesse dado declaração reconhecendo a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a lisura das eleições, você teria ido a Brasília e à Praça dos Três Poderes?”. Aécio se manteve em silêncio, mas ficou evidente a linha de apuração do ministro Alexandre de Moraes. “Essa instigação está na raiz de tudo. Por isso ela é mais grave e, em tese, os instigadores vão ter penas ainda maiores porque eles que fizeram surgir o desejo de praticar o crime”, ressalta Thiago Bottino, professor da FGV Direito do Rio de Janeiro. O caso ainda está longe do fim.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860