Os desafios que a vacinação em massa enfrenta no Brasil
O início da imunização traz otimismo, mas encontra entraves como a falta de doses e de insumos, disputas políticas e desorganização do governo
Depois da festa do início da vacinação, o país terá de fazer muito para evitar uma ressaca. O Brasil iniciou a sua campanha de vacinação contra a Covid-19 com atrasos, sem ter doses suficientes, enfrentando demora na chegada de insumos para produzir o medicamento no país, disputas entre autoridades e um Ministério da Saúde sob a desconfiança da maior parte da sociedade. Na largada desajeitada após a aprovação pela Anvisa de dois imunizantes (CoronaVac e AstraZeneca/Oxford), quem estava mais bem posicionado e organizado se saiu melhor. São Paulo, comandado por João Doria (PSDB), já tinha vacinado em três dias mais de 20 000 pessoas, o que permitiu a ele protagonizar uma espécie de turnê por cidades importantes, na qual bateu na tecla de que a CoronaVac, único imunizante disponível até o momento no país, foi produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com a chinesa Sinovac, por causa do esforço liderado pelo seu governo em contraponto à inação de Bolsonaro, possível rival nas eleições de 2022. A imagem que sintetiza a desvantagem dos outros estados é a do encontro com governadores marcado às pressas pelo ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no aeroporto de Guarulhos, na segunda 18, um dia após o aval da Anvisa. O ministério prometeu que todos receberiam o seu quinhão naquele mesmo dia. Ao menos doze estados só puderam iniciar a imunização na terça.
Até o momento, o total de vacinas à disposição — 6 milhões — é muito pouco em relação ao necessário. O volume mal dá para atender um dos grupos prioritários, o de profissionais de saúde, que soma os mesmos 6 milhões. Mas também estão entre as prioridades os idosos e deficientes abrigados em instituições de longa permanência e os indígenas aldeados. Como agravante, o ministério determinou que se usasse apenas metade das vacinas, para garantir a segunda dose aos beneficiados. Criou-se assim a necessidade de estabelecer a “prioridade da prioridade”, o que não é fácil, como ilustra o episódio ocorrido em Manaus, que anunciou na quinta-feira 21 uma “parada técnica” na vacinação para reavaliar quem atender primeiro — a medida veio após questionamentos sobre a quantidade destinada a indígenas, que são em grande número no estado, e a imunização de profissionais de saúde que não estão na linha de frente. “Para quem recebe essas doses, faz muita diferença, mas em termos populacionais ainda é um número irrisório”, diz Renato Kfouri, primeiro-secretário da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Há décadas o Brasil faz campanhas de vacinação bem-sucedidas, como as da gripe, chegando a atingir 2 milhões de imunizações por dia, mas todas começaram com o lote completo de doses em mãos. No combate à Covid-19, a ideia do governo é ter ao fim por volta de 300 milhões de doses (veja o quadro), o que permitiria vacinar 70% da população. Esse horizonte está distante: há 10,8 milhões de doses disponíveis, todas da CoronaVac — outros 4,8 milhões poderão ser liberados pela Anvisa. A Fiocruz acaba de mudar de fevereiro para março a previsão de entregas das primeiras doses da AstraZeneca/Oxford. Diante do problema, o governo federal tentou agir, mas de forma atabalhoada. Fretou um avião para ir à Índia buscar 2 milhões de doses desse imunizante, mas, com a aeronave já tendo iniciado a viagem, no último dia 14, foi informado de que o país não liberaria a mercadoria naquele momento — na quinta 21, o governo indiano afirmou que começaria a repassar doses ao Brasil no dia seguinte. “Quem domina a área farmacêutica são a Índia e a China. Ficou evidente que vão utilizar a vacina primeiro para eles”, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP.
Tanto a Fiocruz quanto o Butantan enfrentam hoje problemas com o atraso de matérias-primas encomendadas. Responsável pelo fornecimento de ingrediente para a produção das duas únicas vacinas aprovadas até agora pela Anvisa, a China está em dívida com o envio de insumos. A relação do governo Bolsonaro com a potência asiática é tumultuada em razão de ataques já feitos pelo presidente, por seu filho Eduardo Bolsonaro e pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que enxergam conspirações variadas por parte dos chineses. Um ponto de consenso quase absoluto no governo é que a solução passa por mudanças no Itamaraty, de preferência, com a queda de Araújo. Para tentar contornar, Pazuello se reuniu na quarta 20 com o embaixador chinês Yang Wanming. Segundo o diretor do Butantan, Dimas Covas, há 11 000 litros de insumos, suficientes para produzir 19 milhões de doses da CoronaVac, aguardando na China, mas ele não acredita em retaliação diplomática. “A data acordada era de dez dias, mas agora pode demorar até trinta dias. Se as doses chegarem até o fim deste mês, estaremos dentro do cronograma”, diz. Caso a previsão não se confirme, a campanha terá um ritmo a conta-gotas. “Vamos começar a vacinação e parar alguns dias para esperar nova remessa. Não vai ser um processo contínuo”, alerta o médico João Gabbardo, do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo.
O sufoco atual ocorre porque o Palácio do Planalto cometeu o erro de apostar tudo em uma só vacina, a da Fiocruz. A CoronaVac emplacou (e virou a salvação momentânea da lavoura) graças ao empenho do tucano Doria, tendo sempre a oposição de Bolsonaro a essa iniciativa. Sem o investimento do governo paulista, no entanto, até hoje o país não teria uma campanha em andamento. O reconhecimento da população elevou a popularidade de Doria nas redes sociais nos últimos dias e provocou arranhões consideráveis na imagem do presidente (veja na pág. 22). Para corrigir o equívoco, o Palácio do Planalto tenta fechar novos acordos de fornecimento com outras farmacêuticas. Desde o fim do ano passado vem conversando com a Pfizer para a aquisição de 70 milhões de doses. O governo cita como entraves para não bater o martelo o prazo e a quantidade de entrega das doses, a dificuldade para armazenamento da vacina e, em especial, o fato de a Pfizer exigir isenção de responsabilidade sobre possíveis eventos adversos. A primeira entrega de doses estava prevista para dezembro passado, mas o CEO da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, disse a VEJA que o Ministério da Saúde ignorou a proposta. A vacina foi a primeira a ter sua eficácia comprovada em testes clínicos da fase 3, com 95%. A Pfizer entrou com processo na Anvisa, mas a cada dia que o acordo atrasa pode haver diminuição do número de doses disponíveis ou demora na entrega, devido ao interesse global pela vacina. A Pfizer fechou acordos com mais de quarenta países. Para a infectologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute (Washington), o governo deveria se dedicar a fechar acordos com fabricantes internacionais até viabilizar a produção local. “O mundo inteiro está batendo nas portas dessas empresas”, diz a especialista, referindo-se a uma declaração recente de Bolsonaro de que os laboratórios é que deveriam procurar o Brasil. Em meio a tudo isso, governadores correm por fora, até agora sem sucesso. “Fomos atrás da Pfizer, da própria Sinovac e, agora, da Sputnik V, da Rússia”, diz Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão.
No vácuo deixado pelo governo federal, clínicas e empresas privadas sondaram a possibilidade de comprar por conta própria vacinas que estivessem fora do radar das autoridades. A Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) visitou neste mês as instalações da fabricante indiana Bharat Biotech, com o objetivo de negociar 5 milhões de doses da Covaxin. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) quer adquirir 4 milhões de doses. Em tese, a oferta de vacinas no setor privado poderia acelerar o ritmo de imunizados no país, mas o ex-ministro da Saúde Nelson Teich defende que isso seja feito de forma coordenada: “É necessário que o governo garanta que a iniciativa privada respeite os cronogramas públicos, ou trabalhe a importação e escalone-a, para que não sufoque o SUS”.
Apesar do know-how brasileiro em imunizações, há algumas dificuldades peculiares na atual campanha. Por exemplo: se o plano brasileiro der certo e o país conseguir, enfim, um cardápio variado de vacinas, terá de lidar com a aplicação de doses de diferentes fabricantes, que não são intercambiáveis, já que é preciso que o imunizado receba a primeira e a segunda aplicação do mesmo laboratório. “Uma maneira efetiva é fazer a divisão por regiões. Tem sido feito assim no Reino Unido, que têm três imunizantes em uso”, diz Luiz Gustavo de Almeida, microbiologista e coordenador do Instituto Questão de Ciência. Outro problema pode ser a necessidade de ultracongeladores para determinados fármacos, como o da Pfizer, ou de ter de recorrer a voos comerciais em um momento atípico de restrições impostas pela pandemia. “O governo não parece ter um plano de logística consistente”, avalia João Caldana, CEO da empresa de logística Dachser no Brasil, cuja matriz, alemã, é a responsável pela distribuição de vacinas em Berlim. Dessa forma, o tão esperado início da imunização merece ser comemorado, mas ainda há muito que fazer. Dificuldades são esperadas ao deflagrar um processo complexo como esse e é natural que ajustes sejam feitos no caminho, mas é preciso haver mais afinação entre as autoridades, menos divergências políticas e ideológicas e mais competência na condução das negociações que estão em andamento no intrincado xadrez global em que se transformou a busca pela vacina.
Com reportagem de Laryssa Borges, Giulia Vidale e Victor Irajá
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722