O Brasil de luto por Santa Maria: 231 jovens mortos no incêndio da boate Kiss
Governo do RS revisou balanço da tragédia na casa noturna, onde 1.500 pessoas ficaram entre o fogo, a fumaça e a saída obstruída por seguranças. Sobreviventes relatam momentos de pânico e de despreparo
Por Da Redação
27 jan 2013, 20h02
Atualização: Em 31 de janeiro de 2013, o número de mortos era de 236 pessoas. Segundo o Ministério da Saúde, 143 vítimas ainda estavam internadas, mais de oitenta em estado crítico.
O maior desastre da história do Rio Grande do Sul, o segundo incêndio em número de vítimas no Brasil. O país amanheceu de luto, chocado com a morte de duas centenas de jovens, numa contagem que se revelava mais dramática à medida que as horas do domingo avançavam. No fim da noite, de acordo com números oficiais, havia 231 óbitos confirmados no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, cidade a 320 quilômetros de Porto Alegre. Antes, o número oficial era 233, mas alguns nomes estavam repetidos na lista de vítimas identificadas, informou o Instituto Médico Legal (IML). A identificação de corpos foi feita por familiares e amigos. Além disso, de acordo com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, a tragédia deixou ainda ao menos 124 feridos – a maioria segue hospitalizada em Santa Maria, enquanto outros, em estado mais grave, foram transferidos para Porto Alegre.
A noite de diversão de jovens – parte deles menor de idade – de cursos e faculdades da cidade universitária transformou-se em uma catástrofe em questão de minutos: os fogos de artifício de uma banda que se apresentava no local encontraram o material altamente inflamável do isolamento acústico da casa noturna. A fumaça matou a maioria das vítimas por asfixia, poucas por queimadura. Para o acidente ganhar esta dimensão, foi determinante uma sequência de erros e despreparo. A boate com apenas uma saída de emergência, estreita, estava com alvará vencido, e os seguranças, pelo que relataram os sobreviventes, tentaram impedir a saída dos frequentadores, pensando que ocorria uma briga no momento do pânico.
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Foram instantes de desespero, no cenário dantesco que costuma ser deflagrado por esse tipo de incidente. As equipes de resgate que chegaram ao local precisaram derrubar paredes para resgatar vítimas com vida; e, no trabalho de rescaldo do incêndio, bombeiros encontraram o que foi descrito como “uma barreira de corpos”. Ainda pela manhã, a contagem era de cerca de 40 mortos. Conforme as brigadas vasculhavam o local, eram encontrados mais mortos. Outros faleceram nos hospitais. Ainda havia no início da noite, segundo informações do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, 91 pacientes internados. Trinta deles respiravam com ajuda de aparelhos.
A presidente Dilma Rousseff interrompeu sua agenda no Chile, onde acontecia a Cúpula de chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia (UE). Dilma desembarcou na pequena Santa Maria para levar solidariedade e medidas de apoio aos sobreviventes e às famílias de todas as vítimas. A comunidade internacional manifestou condolências tão logo a repercussão do episódio ganhou os sites e telejornais de várias partes do mundo.
As dimensões da tragédia contrastam com a banalidade das causas. E trazem uma necessária reflexão: as fotos mostram que a boate Kiss não era um “cafofo”, mas uma casa noturna com capacidade próxima de 1.000 pessoas – a lotação da casa foi, provavelmente, desrespeitada. Na boate, os jovens e seus pais certamente julgavam haver alguma segurança. Não havia. Como também certamente não há instalações e pessoal adequados em uma infinidade de estabelecimentos que se multiplicam Brasil afora. O risco dos materiais inflamáveis e da presença de fogos de artifício em locais fechados está comprovado por um histórico de pelo menos seis grandes tragédias recentes em boates de várias partes do mundo.
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Como se sabe, em um incêndio, grande parte dos mortos perde a consciência e morre em função da fumaça inalada, e não necessariamente do contato com as chamas. Um vídeo gravado momentos após a retirada dos primeiros corpos mostra corpos sem sinais de grande trauma. Foram pessoas que simplesmente não tiveram para onde fugir no momento da expansão da nuvem de fumaça preta que rapidamente preencheu a boate a partir do instante em que um dos músicos soltou o que, pelos relatos, seria um sinalizador – um pequeno projétil incandescente usado, por exemplo, em embarcações. Outros tantos morreram pisoteados, esmagados pela multidão que se espremia na minúscula saída da casa noturna.
O depoimento de um dos sobreviventes, feito pelo Facebook, é assustador. “Acompanhei o início do fogo que veio das faíscas do sparkles e se propagou pelo teto nas esponjas do isolamento acústico. Não me apavorei porque não achei que poderia lidar com a situação, mas vi muita gente entrar em pânico, cair e desmaiar umas por cima das outros, era um mar de gente atirada. Vi que muita gente em crise acessou a porta mais próxima, que era a do banheiro e se alojaram lá dentro. Vi pessoal que trabalhava se escondendo até dentro de freezers! Quando vi que não tinha mais jeito de sair pela saída principal dei a volta na areá vip e sai pela lateral empurrando e pisando por cima de muita gente, acredito que não sairia se não fosse pela força que utilizei para passar pelas pessoas, ao sair olhava para baixo e via que pisava e cruzava por cima de mulheres e homens desmaiados”. O relato é de Ezequiel Real, um morador de Santa Maria. Segundo ele, havia um mesa colocada por seguranças para impedir a saída descontrolada do público.
A fotógrafa Fernanda Bona, que trabalhava para a casa noturna, registrava o show, a área VIP e fazia retratos para alimentar sites de vida noturna. Acabou registrando os primeiros instantes do incêndio. Ela descreveu para o site de VEJA a evolução do que parecia um pequeno problema para uma situação de catástrofe “Vi que a banda soltava umas faisquinhas, como se fossem foguinhos de artifício. Foi, então, que percebi a fumaça. Em seguida, as pessoas começaram a correr e a gritar fogo”, contou Fernanda. “Saí correndo desesperadamente. Empurrei as pessoas na ânsia de chegar à porta. Demorei uns três minutos para estar no lado de fora. As pessoas estavam enlouquecidas correndo”, afirmou a fotógrafa.
As faisquinhas a que se refere Fernanda eram parte do show da banda Gurizada Fandangueira, que fazia dos efeitos de pirotecnia um atrativo a mais para as apresentações. A página da banda no Facebook traz a seguinte descrição, na apresentação do grupo: “Com a grande experiência comprovada em bailes e shows, demonstra além de todo seu talento, muita inovação em estrutura, efeitos visuais e pirotécnicos, os quais fazem toda a diferença na identidade exclusiva da banda”.
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A mistura de fogos de artifício – mesmo de pequeno porte – com o isolamento acústico foi mortal. Depois do desespero na boate, o centro nervoso da tragédia passou a ser o ginásio do Centro Centro Desportivo Municipal. No chão, sobre o peito de cada uma das vítimas, uma identidade, uma carteira de habilitação ou um celular colocados por integrantes do Centro de Gerenciamento de Crise para tentar facilitar a identificação dos mortos. No início da tarde, quando o ginásio foi aberto para dar início ao procedimento de identificação das vítimas, foi através do toque do celular dos filhos, irmãos e netos, que os parentes confirmaram a pior notícia: a confirmação da morte. Segundo voluntários, a cada toque, um choro de desespero silenciava o ginásio.
“A gente escutava os celulares tocando dentro do ginásio e o choro dos pais e familiares”, contou Carlos Walau, ao Zero Hora. “Tirei o corpo de uma menina que estava com um celular que não parava de tocar. Em seguida, deu barulho de mensagem, li e era a mãe dela perguntando onde ela estava”, contou com a voz embargada Carlos, que ajudou no trabalho de identificação dos corpos.
No local, uma fila de corpos de adolescentes e jovens aguarda reconhecimento pelas famílias. Em número de vítimas no Brasil, o incêndio da boate Kiss só é superado pela tragédia do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, no estado do Rio, quando em 1961 o fogo levou 503 vidas e deixou uma centena de pessoas com sequelas e mutilações. Até hoje na cidade há relatos dramáticos de parentes de vítimas, sobreviventes ou gente que, de alguma forma, teve a vida modificada pelo episódio. É provável que Santa Maria também jamais volte a ser a mesma.
(Com reportagem de Cecília Ritto, Marcela Donini, Luís Bulcão e Pâmela Oliveira)
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