Símbolo de uma época em que os usineiros tinham enorme poder no país, o ex-senador e ex-deputado João Lyra, falecido em 2021, aos 90 anos, construiu seu império a partir da década de 50. No auge, o empresário, nascido em Pernambuco, controlava cinco plantas de produção de cana-de-açúcar — quatro em Alagoas e uma em Minas Gerais —, além de concessionárias de veículos, rádio, jornal, muita terra e uma empresa de táxi-aéreo, entre outras. O grupo chegou a ter 26 000 empregados e parte de suas receitas ajudava a irrigar as conexões políticas do proprietário. Lyra, juntamente com outros usineiros alagoanos, doou 25 milhões de dólares para o então candidato a presidente Fernando Collor de Mello, em 1989, contribuição essencial para a campanha que levou o “caçador de marajás” a Brasília. Quando o ciclo de ouro das usinas no país se encerrou, a exemplo de muitas outras companhias do setor, o grupo de Lyra sofreu um baque enorme. A montanha acumulada de dívidas saiu do controle, até que o conglomerado foi à bancarrota, em 2014. Agora, seus seis filhos travam uma disputa acirrada sobre os rumos da massa falida da Laginha Agro Industrial S/A, avaliada em 4 bilhões de reais, incluindo 900 milhões de reais em caixa e cerca de 1 bilhão de reais em precatórios. Em tese, é possível pagar aos credores e ainda preservar uma parte considerável dessa fortuna.
O litígio se arrasta há quase dez anos, mas o barulho aumentou nos últimos dias por causa de uma polêmica em torno da “joia da coroa” do patrimônio. Com 160 quilômetros quadrados de área e abraçando cinco cidades no entorno de Coruripe, a cerca de 70 quilômetros da capital, a Usina Guaxuma é composta de um parque industrial para o processamento e moagem de cana-de-açúcar, além de centenas de máquinas e automóveis. O restante são terras aptas a receber enormes plantações ou para ser exploradas pelo turismo. Estima-se que a gleba valha mais de 1 bilhão de reais, a despeito de questões como subavaliação oficial, abandono, estado de conservação das estruturas e centenas de invasões promovidas na última década. Em junho, a decisão dos administradores judiciais de arrendar parte da terra da usina escancarou uma nova cizânia, já que a maioria dos filhos gostaria que o patrimônio fosse vendido e as dívidas, quitadas. “Em vez de buscar monetizar os ativos, de forma eficaz, realizando o pagamento aos credores, como seria esperado e exigível, tudo o que faz o administrador judicial é procurar alternativas para manter esta falência em andamento, em amplo descumprimento de seus deveres e obrigações, e em conduta desalinhada ao interesse da coletividade de credores. É uma falência eterna”, afirma, no processo, a empresária Solange Queiroz Ramiro da Costa, ex-esposa de João Lyra, mãe dos seis herdeiros e credora da massa falida.
A decisão de arrendar a usina desagradou, mas a forma como o leilão foi feito ainda levantou suspeitas sobre o processo. Sem especificar o tempo de duração (o ciclo da cana tem sete anos, por exemplo) e a área para a qual os acordos de exploração serão firmados, além de outros parâmetros, o edital publicado deu menos de dez dias para o envio de propostas. Também não houve a divulgação em jornais de grande circulação nacional, necessária para despertar interesses de investidores de outros estados. O resultado foi o aparecimento de apenas um consórcio interessado, formado por muitas empresas criadas em cima da hora ou com capital baixo, o que levantou dúvidas sobre a capacidade financeira delas. Em nota, o escritório Telino & Barros, responsável pela massa falida, confirma que houve apenas uma proposta, mas ressalta que não apareceu nenhum pedido de impugnação do processo. “Logo, não há o que se falar em favorecimento a ninguém. Quanto à vantagem do arrendamento realizado, o comitê de credores emitiu documento aprovando a proposta”, afirma. Nos próximos dias, no entanto, parte dos herdeiros irá entrar com recursos judiciais para suspender o leilão.
O imbróglio acirrou ainda mais uma relação familiar que há anos não vinha bem — mais precisamente desde a interdição judicial de João Lyra, em 2018, por incapacidade. Na época, a filha mais velha, Maria de Lourdes, nomeada curadora do pai, passou a desagradar a seus irmãos com questões como falta de prestação de contas. Entre os herdeiros, ela ganhou o apelido de “general”. Com a morte do patriarca e a inclusão de Lourdinha, como é conhecida, como inventariante, a relação desandou de vez. Agora, quatro de seus cinco irmãos, entre eles Thereza Collor, viúva de Pedro Collor e atualmente casada com o empresário Gustavo Halbreich, todos apoiados pela mãe, requerem a sua destituição. “Sua conduta põe em risco o patrimônio familiar. Identificamos elementos de prova que indicam que Maria de Lourdes teria cometido diversas irregularidades como inventariante, incluindo potencial ocultação da utilização de recursos do espólio para pagar despesas de bens e com seu advogado pessoal e a extrema deficiência na prestação de contas. Os irmãos perderam toda a confiança em sua atuação”, afirmou Thereza a VEJA. Procurada por meio de seu advogado, a inventariante não quis se pronunciar.
A forma como Lourdinha conduz o processo de inventário de Lyra também é refletida no processo da falência do grupo empresarial. Por lei, os herdeiros não podem se pronunciar nas ações de insolvência, cabendo, portanto, apenas à inventariante (além de outras partes, como os credores e acionistas) atuar na contenda judicial aberta em 2014. Sobre a filha mais velha do usineiro recaem queixas de omissão, por ausência de questionamentos ao administrador Igor Telino. O principal deles foi o fato de ele ter perdido prazo para incluir o grupo Laginha em um programa da Fazenda Nacional que poderia reduzir em 95% a dívida com o Fisco. Embora incerto, o passivo tributário da companhia é estimado entre 3,4 bilhões de reais e 4 bilhões de reais. Com a suposta negligência do administrador, parte dos credores pediu sua destituição, o que resultaria no quinto descredenciamento do responsável por gerir os bens e as dívidas da Laginha.
Para piorar ainda mais a relação de Telino com parte dos interessados no processo de falência, ele foi responsável por trazer ao processo o advogado Eugênio Aragão. O caso promete abrir novos embates em diferentes âmbitos da Justiça. Ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff, Aragão foi nomeado por Telino para atuar em uma tarefa-chave como a de reduzir a dívida de impostos. A principal reclamação é que o trabalho de Aragão poderá resultar em um gasto adicional de 200 milhões de reais, a depender do tamanho do abatimento que o advogado conseguir — esses seus honorários passariam à frente na lista de recebíveis, causando, em tese, sérios prejuízos aos 20 000 credores. “Agraciará o contratado do administrador judicial com um prêmio da Mega-Sena da Virada, sem que o auxiliar tenha que mover uma única palha para isso”, afirma a mãe dos herdeiros, Solange. Para ela, Thereza Collor e outros três filhos, incluindo Antonio José Pereira de Lyra (que tenta autorização para ingressar no processo, sob alegação de ser acionista da Laginha), o ex-ministro não teria experiência em questões tributárias.
Além da alegada inaptidão, pesariam sobre Aragão conexões indiretas dele com uma pessoa ligada ao processo em questão. O seu sócio na Aragão & Tomaz Advogados Associados, Willer Tomaz, advogou para o desembargador Klever Loureiro em pedido de providências instaurado no Conselho Nacional de Justiça, por meio do qual credores questionavam a parcialidade do magistrado na relatoria da ação da Laginha no Tribunal de Justiça de Alagoas. Segundo a queixa, o desembargador teria impedido a alienação de alguns bens da massa falida para favorecer a administração judicial. O caso continua tramitando no CNJ, com um parecer favorável a Loureiro. Em nota, a assessoria de Eugênio Aragão afirma que a sua contratação como consultor partiu de terceiros, com quem o advogado não possui relações pessoais, e se baseou no currículo e experiência dele na Justiça: “Ele foi membro do Ministério Público Federal por trinta anos, quando atuou reiteradamente em processos de natureza tributária”. Sobre os honorários, a nota ressalta que estão dentro do que estabelece a OAB. Apesar da aprovação da entrada de Aragão no processo pelo juiz, com o crivo do Ministério Público, novos questionamentos jurídicos serão apresentados contra a contratação nos próximos dias.
Naturalmente, a batalha nos tribunais deteriorou de vez o ambiente entre os Lyra. A relação entre eles se dá hoje apenas por meio de advogados. As infindáveis discussões judiciais também interferiram na relação dos doze primos, que seguem os passos dos pais e tios e não convivem mais. Assim como a relação familiar, o impressionante patrimônio do grupo Laginha também encontra-se em processo de deterioração, embora o seu valor principal esteja nas terras. Apenas a Guaxuma tem uma área maior que a de 188 municípios do estado de São Paulo. É esse naco nada desprezível do antigo império que alimenta a atual usina de intrigas.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852