Eu estava em casa quando recebi um vídeo apavorante em que aparecia meu filho, Nelson, de 14 anos. A mãe de uma colega dele me mandou as cenas pelo WhatsApp. Era a hora do recreio, meu filho estava com um amigo quando chegou um grupo de garotos do 8º ano, dois anos acima do dele. Ao se aproximarem, eles começaram a xingá-lo. Meu filho ficou nervoso e agarrou a mochila de um deles. Foi então que outros meninos apareceram. Um deles o agarrou por trás enquanto outros dois tomaram de volta a mochila, à força. Jogaram o Nelson no chão. No vídeo dá para escutar os gritos de outros alunos pedindo para soltarem meu filho, mas nada foi feito. O Nelson ficou muito nervoso e tentou correr atrás de um dos meninos. O vídeo terminou aí. Meu filho tem síndrome de Down. Fiquei em choque. Nesse dia, ele tinha chegado em casa normalmente, sem mencionar nada. Foram quase dois minutos de agressão ao meu menino. Mas sei que houve muito mais.
A sensação que me dá é de tristeza e fúria ao mesmo tempo. O Nelson é um menino muito simpático, carinhoso e ama fazer amigos. É muito calmo. Não há motivo para serem agressivos com ele. O Nelson tem uma irmã mais velha que sempre foi muito agitada, e isso o fez ser mais ativo também. Ele joga videogame, tira selfie, canta, assiste a vídeos no YouTube, ajuda nas tarefas de casa. Interage bem com todos. Eu mesma muitas vezes chego até a esquecer que ele tem Down. Os adolescentes que fizeram isso agiram com preconceito. O Nelson foi agredido apenas porque tem Down.
Após ter acesso ao vídeo, passei a receber outros relatos de bullying praticado contra ele. Meninos que estudam na mesma sala já bateram na cabeça do Nelson. Uma amiga da escola me contou que esses garotos costumam jogar as coisas dele no chão e o mandam calar a boca. É claro que ninguém pode sofrer bullying, mas quando isso ocorre com uma pessoa especial é ainda mais terrível. Eu tinha escolhido uma escola regular, pública, porque haviam prometido um acompanhamento de perto. De fato, ao longo dos quatro primeiros anos em que ele estudou lá, as coisas andaram bem. Os problemas só começaram recentemente. As crianças mais novas não têm preconceito nem são agressivas. Depois fica tudo mais difícil.
Procurei a escola no mesmo dia em que vi o vídeo. A diretoria alegou não saber do ocorrido e se prontificou a tomar as medidas cabíveis, como conversar com os pais dos meninos envolvidos. O caso foi levado à delegacia, e lá me disseram que os provocadores serão chamados à Vara da Infância e Juventude. Fiz tudo o que podia fazer. O Nelson chegou a ir à escola nos dias seguintes, mas não quero mais que ele retorne. Decidi transferi-lo. No novo colégio, privado, já me disseram que ele terá apoio psicológico. Acredito que meu filho ainda não entenda bem o que aconteceu e o que está acontecendo. Ele viu as imagens no meu celular e ficou muito triste. Mas sinto que está feliz com a troca. O Nelson precisa do contato com outras crianças. É ciente de suas dificuldades pedagógicas, fica frustrado por não conseguir ir além e comemora cada pequena tarefa realizada. Tenho medo de que no futuro ele passe novamente por tudo isso. Seja onde for. Não estou esperando que me procurem para pedir desculpas. Quero somente que os pais desses meninos mostrem o erro que os filhos cometeram e ensinem a eles o respeito, para que outras crianças, especiais ou não, não passem mais por isso. Que esta minha história seja assunto de muita discussão sobre bullying nas escolas e nas casas. Sei que o mundo é cruel e há grandes possibilidades de que ele enfrente preconceito mais adiante. A sociedade ainda não está preparada para inclusões.
Depoimento dado a Leticia Passos
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650