Mas afinal, para que serve o STF?
Afogado por ações criminais e sem estrutura para dar conta da demanda, Supremo Tribunal Federal se afasta da origem de guardião da constituição

O artigo 102 da Constituição brasileira, que rege a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), diz que a função principal do órgão não é julgar ninguém, mas ser o guardião da Carta Magna contra todas as suas possíveis ameaças. Formada por onze homens e mulheres, de pelo menos 35 anos, reputação ilibada e notório saber jurídico, deve exercer essa proteção ao impedir que atos administrativos, projetos de lei ou até decisões judiciais ofendam preceitos da Constituição sejam validados. “É a tarefa de ir contra a decisão da maioria, se esta não estiver de acordo com a Constituição”, observa Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Hoje, no entanto, para cada mil casos efetivamente de interpretações constitucionais, o Supremo recebe cerca de cinquenta mil processos de caráter criminal.
Tal situação ocorre porque, além de colocar nele a expectativa de garantir o seu cumprimento, a Constituição também atribui ao STF outras duas grandes funções: ser uma “corte de últimos recursos”, como diz Vilhena, e julgar autoridades com foro por prerrogativa de função, o famoso foro privilegiado. Presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, ministros e o procurador-geral da República não podem ser julgados pela Justiça comum, competindo ao Supremo se transformar em corte criminal para submetê-los a julgamento, se for o caso. Também compete à Corte julgar casos de extradição e conflitos entre entes públicos.
Dada a quantidade exorbitante de políticos envolvidos com esquemas de corrupção, particularmente após o escândalo do Mensalão, em 2005, o foro privilegiado acaba transformando o Supremo em uma espécie de vara de 1ª instância superlotada, explica o advogado Daniel Falcão, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “O STF tem um estoque gigantesco de processos, mas é uma corte que não tem estrutura para isso”, aponta.
A característica de corte recursal explica boa parte do volume de processos. Pela lei brasileira, cidadãos podem recorrer ao Supremo como instância definitiva de deliberação em casos especiais. Para ter o caso analisado, é necessário comprovar que o processo não diz respeito apenas ao cidadão, mas implica uma série de casos análogos – ou seja, que uma decisão individual pode estabelecer uma repercussão econômica, jurídica, social ou política. Foi a ação de um único casal em busca de reconhecimento jurídico que conseguiu colocar como padrão da Justiça brasileira a validação da união homoafetiva.
Decisões como essas geram acusações de que o STF acaba por legislar, supostamente interferindo nas atribuições do Congresso Nacional. Vilhena aponta que a atuação do Supremo não cria leis, apenas as invalida, sendo uma espécie de “legislador negativo”. Nesse caso, a Corte entendeu que não havia proibição expressa suficiente para que a autorização da união homoafetiva não fosse concedida. Falcão explica que a Constituição brasileira é “prolixa” e tem partes que não ficam claras, o que provoca a Corte a interpretar qual é o correto. “Se tiver uma manifestação em frente a um hospital, a Constituição diz que é livre o direito à manifestação, mas também que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana. E aí? Qual prevalece? São casos como esses que o Supremo tem de decidir”, exemplifica.
Os especialistas ressaltam, contudo, que as decisões não são aplicadas automaticamente. Só tem reflexo nas instâncias inferiores casos nos quais a Corte decide aprovar, “após reiteradas decisões sobre matéria constitucional”, segundo o artigo 103 da Constituição, uma súmula com efeito vinculante, em que todas as decisões semelhantes deverão se basear. É claro, ressalta Falcão, que tudo que o STF faz é parâmetro, mesmo as decisões não vinculantes. “Os juízes sabem que, decidindo diferente do Supremo, a chance de a sentença ser alterada nas instâncias superiores é grande”, explica.

Apesar de ter sobrecarregado os ministros do STF, que têm decidido sobre mais de dez mil casos por ano – enquanto nos EUA, por exemplo, são menos de 500 –, o alto número de julgamentos criminais com foro privilegiado não foi, em tudo, um desperdício, na avaliação de Daniel Falcão. “Não tenho dúvida de que julgamentos como o da ação penal 470 [Mensalão], por exemplo, deram coragem para essa quantidade de juízes de primeira instância tomando decisões fortes contra atos de corrupção”, diz o professor.
Difícil afirmar que os juízes federais Sergio Moro (responsável pela Lava Jato em Curitiba) e Marcelo Bretas (que responde pelas operações Calicute e Eficiência, desdobramentos da Lava Jato no Rio), entre outros, tenham se inspirado nas sentenças de Joaquim Barbosa no Mensalão, mas aquelas decisões do Supremo marcaram a história da justiça criminal no Brasil. De lá para cá, o STF passou a estar no centro das atenções, e a população, a acompanhar mais de perto a nossa corte constitucional.