Martha Rocha, a miss eterna que lavou a alma brasileira
Morre a mulher de espetacular beleza e imensa sintonia com os fãs, a quem encheu de alegria e orgulho quando tudo no país dava errado
Imagine um país em momento de alta turbulência política, com o moral machucado por derrotas futebolísticas e em posição subalterna diante dos Estados Unidos, a grande potência ocidental. Assim era o Brasil em 1954, quando a baiana Martha Rocha, declarados 18 aninhos, despontou na passarela com sua beleza esplendorosa e sorriso contagiante, e dali alçou voo, levando nas asas a chance de lustrar a autoestima nacional. Quase deu certo. A morena de 1,70 metro, cabelos claros e impactantes olhos azuis, vencedora incontestável do primeiro concurso de Miss Brasil em décadas, recebeu a faixa de segundo lugar no Miss Universo — realizado em Long Beach, na Califórnia, e vencido por uma americana sem graça, Miriam Stevenson. Uma história inventada no calor da coroa perdida, a de que Martha só não ganhou porque tinha 2 polegadas (5 centímetros) a mais no quadril do que as regras permitiam, salvou a honra brasileira. Martha foi abraçada na volta por uma população encantada com sua musa e assim passou a vida, sempre miss, sempre linda, até adoecer, se recolher e, finalmente, morrer no sábado 4 em um asilo para idosos em Niterói, no Rio de Janeiro.
Na noite da quase vitória de Martha Rocha em Long Beach, 24 de julho de 1954, a seleção brasileira tinha sido recém-desclassificada, nas quartas de final, da Copa do Mundo da Suíça — isso com a nação de chuteiras ainda sentindo a facada no peito da derrota para o Uruguai na final de quatro anos antes, em pleno Maracanã. A política atravessava ondas de choque, diante da enxurrada de denúncias cada vez mais graves, e em tom cada vez mais desafiador, que encostava na parede o presidente Getúlio Vargas. Ele viria a se suicidar exatamente um mês depois, no Palácio do Catete, no Rio. Com tanta coisa ruim em volta, Martha Rocha era o respiro popular, perfumado por sua aura de deslumbre e carisma.
A morena de sotaque soteropolitano e feições europeias nasceu em Salvador, filha de pai baiano e mãe paranaense, descendente de alemães. “Representado por ela no Miss Universo, o Brasil queria exibir civilidade, mostrar que não era mais mestiço, que acompanhava os passos dos Estados Unidos, visto como a grande potência vencedora da II Guerra, e que tinha mulheres tão lindas quanto as estrelas do cinema”, diz a historiadora Mary Del Priore. Não colou muito lá fora, mas aqui a popularidade de Martha foi às alturas — provavelmente um dos únicos casos de segundo lugar do mundo não deletado imediatamente da memória coletiva. “Ela foi um alento para o Brasil e virou referência de coisas positivas, apesar da derrota”, afirma João Ricardo Dias, autodenominado missólogo, especialista em misses e concursos.
Depois de cultivar durante décadas a balela das 2 polegadas, inventada por um jornalista para pacificar os leitores, ela mesma desmentiu a história em sua autobiografia: “Nos Estados Unidos, ninguém me tirou as medidas”. Nem fazia mesmo o menor sentido: a vencedora tinha exatamente os mesmos 96 centímetros de quadril. E, além disso, quem em sã consciência poderia ver exageros justo no centro de gravidade do corpo em formato de violão que causava furor na época? “Não foi por 2 polegadas, não. Mas vamos deixar como se fosse”, brincou ela em uma entrevista. Celebridade estabelecida, Martha recebeu convites para atuar e cantar, mas optou por seguir o figurino feminino de seu tempo. “Apesar dos aditivos da modernidade — popularização dos eletrodomésticos, aceitação do maiô de duas peças, sucesso da bossa nova e das boates —, o comportamento dos casais tradicionais não havia mudado”, diz Mary.
Mesmo sendo unanimidade nacional, com direito a marchinhas de Carnaval, torta, bichos em zoológicos e modelos de carro com seu nome, Martha teve uma vida de altos e baixos. Casou-se duas vezes — o primeiro marido, o banqueiro Álvaro Piano, morreu em um acidente de avião e a deixou viúva aos 23 anos. Teve três filhos e, em 1995, anunciou haver perdido tudo com a falência da Casa Piano e a fuga do cunhado com seu patrimônio. Passou a ganhar a vida como jurada paga de concursos de miss — instituição que deve a ela boa parte de seu sucesso no século passado — e vendendo os quadros que pintava. Teve um câncer de mama, recolheu-se e, há cinco anos, contraiu uma infecção hospitalar da qual não se recuperou. Também sofria de enfisema e, nos últimos anos, tinha dificuldade de se movimentar. “O fim foi uma graça em meio à tristeza”, disse Álvaro, o filho mais velho. Martha morreu de infarto aos 83 anos (ou 87 — teria diminuído a idade para concorrer ao Miss Brasil). Sem perder a majestade.
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Clique e AssineColaborou Thaís Gesteira
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695