No meio da tarde do dia 5 de novembro de 2015, o rompimento de uma barragem da Samarco em Mariana (MG) deu vazão a um mar de lama tóxica que cobriu rapidamente dezenas de cidades de Minas Gerais e percorreu mais de 600 quilômetros até o litoral do Espírito Santo. Além das gravíssimas consequências para a fauna e flora locais, o desastre provocou a morte de dezenove pessoas e destruiu as vidas de milhares de famílias. Nove anos depois, a maior catástrofe deu origem ao maior litígio ambiental do mundo. Começou a ser julgada no início desta semana uma ação coletiva no valor de 230 bilhões de reais que 620 000 vítimas — entre moradores, comunidades indígenas, municípios, empresas e até entidades religiosas — movem no Reino Unido contra duas empresas do BHP Group, dona da Samarco. O caso foi aberto por lá em 2018, ficando enroscado por quatro anos na discussão sobre a competência da Justiça britânica de apreciar o pedido. A questão foi pacificada em um recurso que terminou de ser julgado em 2022 e, apenas agora, a briga começou para valer, com previsão de ter um desfecho em março de 2025.
Não há paralelo em qualquer outra ação do tipo em termos de quantidade de autores e tamanho da indenização pleiteada. O fator maior de ineditismo, no entanto, reside no polêmico fato de um tribunal estrangeiro julgar um crime ambiental ocorrido em solo brasileiro ao mesmo tempo que há um processo em curso no país debruçado sobre o mesmo caso. Segundo alguns analistas, o movimento configura uma espécie de “colonialismo judicial”. No discurso dos promotores da ação, a alegação é a de que os tribunais daqui se mostraram ineficientes para dar uma resposta em um prazo razoável e o pretexto para levar o caso à Europa é o envolvimento da BHP. De fato, está mais do que na hora de se fazer justiça. O que os advogados do Reino Unido não dizem de forma explícita é que há uma questão financeira com um peso enorme sobre essa iniciativa.
O processo em questão foi iniciado pela banca britânica Pogust Goodhead, que se apresenta como um escritório de advocacia global especializado em ações coletivas ambientais e sociais. “Nossa expectativa é condenar a BHP e responsabilizá-la. Ela nunca admitiu sua responsabilidade. E, para todas as vítimas que represento, espero alcançar um certo grau de Justiça”, disse a VEJA o advogado Tom Goodhead, CEO e sócio do escritório. O serviço, no entanto, não sairá de graça. Muito pelo contrário. A firma fez com seus mais de 600 000 clientes contratos de risco — quando o cliente não paga nada no começo, mas no fim o advogado recebe um percentual sobre o êxito da ação. Ou seja, se a Justiça britânica condenar a BHP e determinar indenizações no patamar pleiteado, o escritório receberá uma fatia de 20%, valor que pode chegar ao montante de 46 bilhões de reais.
Devido ao risco de uma causa tão importante tornar-se mais um alvo de “fundos abutres”, especializados em financiar litígios de alto potencial de retorno financeiro, a história motivou uma ação do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), enviada ao Supremo Tribunal Federal, questionando a validade dos contratos de prestação de serviço que 46 municípios brasileiros fecharam com o Pogust Goodhead. Como os acordos dizem que eles terão de pagar 20% do êxito da indenização ao escritório internacional, o argumento apresentado ao STF é de que entes públicos não podem gastar suas receitas livremente — dependem de licitação, lei orçamentária — e, por isso, os papéis não têm validade. O caso está nas mãos do ministro Flávio Dino, que, antes de decidir se suspende ou não esses contratos, acertadamente pediu para ver cada um deles, bloqueando, pelo menos por ora, quaisquer pagamentos dos municípios às bancas estrangeiras. O Pogust Goodhead acusa a mineradora de ter financiado o processo movido pelo Ibram no STF. De forma a evitar problemas, a Justiça britânica deu uma ordem impedindo a BHP de interferir no processo do Supremo, sob pena de prisão de seus diretores.
O julgamento no Reino Unido também gera estranheza por ele ter se iniciado justamente em meio ao que parece ser o último capítulo da novela para fechar um acordo sobre o tema por aqui. Em março de 2016, a Justiça brasileira fez o primeiro acordo com a Samarco e a Vale, no valor de 20 bilhões de reais, para compensação das pessoas atingidas pelo mar de lama tóxica e reconstrução das cidades. “Em vez de o poder público ficar responsável pela fiscalização das compensações, criaram uma entidade, a Fundação Renova, com um programa de governança específico”, lembra a advogada ambientalista Luciana Ricci Salomoni, pesquisadora do caso de Mariana. Desde o começo do acordo, a Renova foi acusada de favorecer as empresas mineradoras e de dificultar o acesso às indenizações — exigindo, por exemplo, comprovantes de residências de pessoas que perderam tudo o que têm embaixo da lama.
Felizmente, ainda que com enorme e injustificável atraso, os problemas acabaram sendo contornados para dar um fim ao imbróglio. A Advocacia-Geral da União, braço que fala judicialmente em nome do governo federal, costurou com as empresas, Ministério Público, Defensoria Pública e os estados de Minas e do Espírito Santo a repactuação do acordo de 2016. A Samarco colocou sobre a mesa a proposta de 170 bilhões de reais — valor que já engloba os 38 bilhões desembolsados nos últimos nove anos. Dentro do novo pacote, cerca de 30 bilhões vão ser usados para pagar ressarcimentos às vítimas (500 000 pessoas serão beneficiadas) e o valores restante ficarão destinados ao poder público para financiar ações de reconstrução. A assinatura desse acordo está prevista para esta sexta, 25.
Com base nisso, as mineradoras devem quase que imediatamente pedir o arquivamento do processo do Reino Unido, afirmando que não podem ser condenadas a indenizar duas vezes o mesmo episódio. Apesar da força e da lógica irrefutável desse argumento, o escritório que está por trás da ação naquele país não vai desistir tão fácil da tentativa de embolsar bilhões com um eventual ganho de causa. O CEO da banca que chefia o processo aposta que o acordo firmado por aqui não vai impedir o avanço do processo no Reino Unido. “O governo brasileiro não tem jurisdição sobre o tribunal de Londres. O julgamento não vai ser encerrado”, torce Goodhead.
O barulho provocado pelo surpreendente avanço do caso nos tribunais do Reino Unido é exemplo de um crescente de movimentações judiciais a pretexto de responsabilizar ambientalmente empresas em nível global, mas sempre de olho na possibilidade de obter lucros altos com a iniciativa. Em março, o Pogust Goodhead propôs na Holanda uma ação parecida com a britânica contra a Samarco, argumentando que a filial holandesa tem suas digitais no que aconteceu em Mariana. O escritório ainda move processos por causa de um vazamento de óleo no Peru e articula ações no caso de Brumadinho. Também em Londres, a Shell responde a uma ação coletiva movida por 11 000 vítimas de um vazamento de suas petroleiras que arruinaram rios na Nigéria. É preciso muito cuidado nos tempos de hoje para não contaminar com objetivos financeiros, muitos deles questionáveis, a necessidade de se fazer justiça mais rápido nos casos de crimes ambientais.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916