Oito dias após ter tomado posse, Luiz Inácio Lula da Silva enfrentava o seu momento mais delicado no terceiro mandato, quando uma turba com inspiração golpista invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes em Brasília. De Araraquara, no interior paulista, onde estava, anunciou a reação do governo, com um decreto de intervenção na segurança pública da capital federal, e passou a enumerar aqueles que considerava responsáveis pela barbárie. Após indicações genéricas como “vândalos”, “nazistas”, “fascistas” e “antidemocráticos”, vieram acusações mais direcionadas. “Garimpeiros, madeireiros ilegais. Essa gente estava lá. O agronegócio maldoso, aquele agronegócio que quer utilizar agrotóxicos sem nenhum respeito à saúde humana, provavelmente também estava lá”, disse, sem apresentar nenhuma prova do que falava. A declaração não surpreendeu. Na campanha, ele já havia utilizado as expressões “fascistas” e “direitistas” para se referir ao setor, que deu apoio em massa a Jair Bolsonaro. Vitorioso, voltou à carga. “Não me preocupo quando dizem que o agro não gosta do Lula. Não quero que gostem, mas que me respeitem”, disse em novembro.
Cinco meses depois, Lula dá os primeiros sinais de que pode, finalmente, abandonar a cantilena belicista para buscar uma convivência mais saudável com o setor. Na terça-feira 6, em Luís Eduardo Magalhães, na Bahia Farm Show, a maior feira agrícola do Nordeste, ele anunciou 7,6 bilhões de reais para o financiamento da safra, lembrou dos bons tempos vividos pela agropecuária no seu primeiro mandato e apelou à conciliação, ao pedir que os brasileiros “joguem o ódio na lata de lixo”. O episódio contrastou com o clima de outra feira recente do setor, quando o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, cancelou a ida à Agrishow de Ribeirão Preto, em São Paulo, devido à presença de Bolsonaro, que acabaria se tornando a estrela do negócio. Enfurecido com o episódio, Lula chamou os organizadores de “povo mau-caráter, fascista e negacionista”. Não vai ser fácil apagar a memória desses ataques desnecessários. Na Bahia Farm Show, apesar de aplaudido pelos participantes do evento, com acesso controlado, Lula foi alvo de vaias e gritos de “ladrão” do lado de fora.
A tentativa de armistício com o campo é mais do que necessária, tendo em conta a importância cada vez maior do setor para a economia do país. Na semana passada, o agro deu novas demonstrações de sua força e relevância: com um crescimento de 21,6%, puxou para cima o PIB do primeiro trimestre, que na média teve expansão de 1,9% acima do que se esperava (veja o quadro). Entre janeiro e abril, o campo foi responsável por 49% das exportações brasileiras, um recorde. A previsão é que a safra deste ano chegue a 302 milhões de toneladas de grãos, o que também seria histórico. O país é o maior exportador mundial de soja e de carne, o terceiro maior produtor de milho e feijão e o quarto maior produtor de alimentos do mundo — atrás de Estados Unidos, China e Índia (que pode superar em 2023). Nos três últimos anos, o agro foi responsável diretamente por 359 600 vagas de empregos formais, segundo estudo da FGV Agro. “O setor gera emprego e renda em áreas em que não se tem nenhuma outra atividade econômica”, diz o economista Felippe Serigati, coordenador do Mestrado Profissional em Agronegócio da FGV.
Além do peso enorme do agro para as finanças do país, que já seria o suficiente para um presidente manter uma relação harmônica e produtiva com o setor, brigar com os empresários do campo não é um bom negócio em termos políticos. Ao longo dos anos, o setor se organizou no Congresso, criando uma bancada cada vez maior, mais coesa e organizada, que conta hoje com 300 deputados e quarenta senadores — 24% maior do que na legislatura passada. Em seu terceiro mandato, Lula, que sofre para formar uma base política no Congresso, já trombou com essa força logo no início do mandato. Contra a vontade do governo, a bancada ruralista se mostrou fundamental na aprovação do marco temporal na Câmara (que limita as demarcações de terras indígenas) e atuou para retirar funções estratégicas para o setor, como o Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas (ANA) e a criação de reservas indígenas, da alçada de pastas comandadas por ministros considerados hostis como Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas). Antes, a bancada já havia sido decisiva ao impor a CPI do MST, ferramenta que usará para pressionar o governo e inibir as ações do movimento dos sem-terra.
Os novos capítulos dessa relação difícil entre o PT e o agronegócio fazem parte de uma longa história de desentendimentos e de desconfianças mútuas. Na primeira eleição pós-ditadura, em 1989, quando Lula ameaçou a sua primeira vitória, a UDR (União Democrática Ruralista), liderada pelo presidenciável Ronaldo Caiado, tinha como principal meta o combate ao ideário de esquerda representado pelo petista. A bancada ruralista nasceu um ano antes, durante a Constituinte de 1988, quando lutou principalmente pelo direito à propriedade privada. A frente foi oficializada em 1995, mas teve pouco protagonismo até 2008, quando passou a se chamar Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Desde então, se tornou o agrupamento mais influente e com a maior capacidade de mobilização, à frente de outros colegiados atuantes como as bancadas evangélica e da segurança. A FPA tem um site e uma revista, um think tank para traçar suas estratégias — o Instituto Pensar Agropecuária (IPA) — e uma agenda organizadíssima sobre os temas em discussão no Congresso, com um indicativo do seu posicionamento para cada projeto.
O crescimento da atuação política dos ruralistas é uma fonte de preocupação para Lula também por um outro motivo: a bancada é peça-chave em um Congresso que saiu mais inclinado à direita da eleição do ano passado. Dos 300 deputados que compõem a FPA na Câmara, 247 (82%) estão em cinco partidos que vão do centro à direita: PL, União Brasil, PP, PSD e Republicanos. Ou seja, não há a menor chance de o governo aprovar algo relevante no Parlamento sem se submeter a uma negociação com esse grupo. Para o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, que serviu como ponte de Lula para o agronegócio no primeiro mandato, a bancada ruralista se fortaleceu e representa a grande maioria das demandas da classe rural, apesar de o segmento não ser homogêneo. “Há setores que demandam mais crédito, avanços e seguros do que outros. É uma diversidade grande e, naturalmente, uns estão mais representados que outros”, analisa.
Boa parte da resistência a Lula no agronegócio — e vice-versa — vem do alinhamento de um setor expressivo dos produtores rurais ao bolsonarismo. Líderes do agro foram responsáveis por parcela significativa do financiamento da campanha do ex-presidente em 2022. Oscar Luiz Cervi, da Cervi Agro, uma das maiores produtoras de grãos do país, e Cornelio Sanders, do Grupo Progresso, produtor de soja e milho, foram alguns dos maiores doadores — 1 milhão de reais cada um. Investigações da Polícia Federal apontam que empresários do agronegócio financiaram bloqueios em estradas e os atos de 8 de janeiro. A Aprosoja Brasil, uma das entidades mais importantes na representação dos produtores de soja, teve a conta bancária bloqueada pelo Supremo Tribunal Federal em 2021 por suposto financiamento de atos violentos no 7 de Setembro. “O setor rural deu muito apoio a Bolsonaro e vai continuar dando enquanto não tiver um governo que venha mostrar que está comprometido com a segurança jurídica”, diz o presidente, Antônio Galvan, investigado no inquérito dos atos antidemocráticos. “As bases de pecuaristas e sojicultores foram cativadas de modo profundo por Bolsonaro, sobretudo por uma combinação de ações simbólicas e políticas. E continuam a pressionar associações e parlamentares na direção de animosidade com o novo governo”, afirma o antropólogo Caio Pompeia, pesquisador da USP e autor do livro Formação Política do Agronegócio.
Na composição do atual governo, até que Lula tentou reduzir os danos, escolhendo a dedo o ministro da Agricultura. Carlos Fávaro tem laços fortes com o setor: é agropecuarista, senador do PSD-MT e ex-vice-presidente da Aprosoja. Apesar de trombadas como a ocorrida na Agrishow de Ribeirão Preto, ele tem sido elogiado por lideranças do campo. Na Bahia Farm Show, disse que Lula pedia a ele há tempos para participar de eventos daquele tipo em busca de aproximação com o setor e afirmou que era “hora da virada de chave”. “Para nós, a eleição acabou, agora é hora de trabalhar”, disse. Segundo ele, o principal feito do governo tem sido “andar mundo afora, mostrando o que produzimos com sustentabilidade”. “Não vão colocar a pecha nos produtores brasileiros de criminosos, que destroem o meio ambiente, não é essa a realidade”, declarou na ocasião.
Não foi por acaso a ênfase do ministro na questão da sustentabilidade. A busca por uma posição equilibrada entre a preservação ambiental e a atividade no campo é essencial para garantir a continuidade do crescimento, sobretudo na luta por mais espaços no mercado internacional. A despeito dos avanços feitos pelos setores do campo mais modernos e antenados com essa prioridade, os concorrentes de fora ainda exploram a imagem ruim da porção mais atrasada do agro nacional. Um exemplo foi dado pela União Europeia no dia 19 de abril ao aprovar lei que obriga as empresas a comprovarem que produtos de uma série de cadeias — como gado, cacau, café, soja, madeira e papel — não vêm de áreas desmatadas. Países considerados de “alto risco” passarão por uma verificação mais rigorosa. “O Brasil provavelmente se enquadrará nessa categoria, especialmente se considerarmos que o desmatamento em março foi 14% maior do que em março de 2022”, afirmou o eurodeputado luxemburguês Christophe Hansen, relator do projeto. Na semana passada, um despacho da Associated Press, que rodou o mundo, se referiu à frente ruralista no Congresso como beef caucus, expressão que pode ser traduzida, grosso modo, como “bancada do boi”, para noticiar a aprovação do marco temporal pela Câmara.
Na era de Lula 3, na qual a bandeira ambiental é importante para abrir a porteira à reinserção dele no rol de políticos mundialmente relevantes, uma de suas obsessões do momento, não será fácil conciliar o discurso com algumas das necessidades e pretensões do agro. Ainda que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também tenha feito recentemente acenos de paz ao lançar o novo plano contra o desmatamento, dizendo que financiará atividades agrícolas de baixo carbono, boa parte dos empresários do campo tem um pé atrás com relação às ideias e à atuação dela. O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), avalia que o ministério comandado por Marina emite sinalizações “negativas”, como ao se colocar contra as mudanças da MP dos Ministérios, que retirou atribuições da pasta comandada por ela. Os ventos, no entanto, têm mudado, avalia o deputado, que vê como positiva a recente postura de Lula. “Caiu a ficha de que não pode ficar guerreando com a gente”, diz. “O agro tem feito pelo país o que os outros não estão conseguindo fazer”, completa outro líder da FPA, o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA). Os parlamentares acompanham com atenção especial o que será feito na prática, sobretudo em relação a uma antiga preocupação: o crédito. “Estamos tratando de milho e soja abaixo do custo de produção e vamos precisar de seguro. A estimativa é que precisaríamos de 25 bilhões de reais para a equalização de juro”, diz Lupion. Na próxima semana, a FPA vai se reunir com os ministros Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento), Fávaro e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para tratar do tema.
Além da necessidade de sempre (dinheiro), a bancada ruralista tem uma agenda no Congresso que pode colocá-la de novo em rota de colisão com o governo. Se Marina é vista por parte dos empresários do campo como uma radical que impede o progresso do agro, a pauta dos ruralistas no Congresso também não é das mais fáceis de engolir. A FPA quer a aprovação do marco temporal no Senado (a gestão Lula é contra) e batalha para flexibilizar o licenciamento ambiental e facilitar a regularização fundiária, o que na prática beneficiaria boa parte das áreas cujo embargo foi anunciado por Lula no evento com Marina por serem propriedades com desmatamento. “Nosso maior interesse é ter condições de ser o maior produtor de alimentos do mundo sem aumentar área de desmatamento ilegal. Mas temos uma legislação extremamente restritiva, que é o Código Florestal”, diz Lupion. Outra prioridade é o projeto que trata de defensivos agrícolas — que a oposição ambientalista batizou de “PL do Veneno”. Todos eles já passaram pela Câmara e estão no Senado. Na próxima semana, a FPA vai se reunir com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para entregar a “pauta completa” do setor e acertar uma agenda de votações. Os movimentos tendem a provocar ruídos na relação com o governo. Será a hora de saber se o aceno de paz com o campo ficará apenas no discurso ou se terá vida longa. É urgente buscar o ponto de equilíbrio nessa área. O Brasil não ganha nada com bravatas de palanque do presidente contra um setor tão fundamental — e tampouco lucra quando parte da força política ruralista empurra o país na direção errada.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845