As obras do médium João de Deus são conhecidas e contraditórias. De um lado estão suas cirurgias espirituais, que lhe renderam uma legião de fiéis, pacientes famosos e uma fortuna avaliada em pelo menos 100 milhões de reais. De outro, os crimes sexuais que cometeu, conforme denúncias apresentadas por mais de 600 mulheres ao Ministério Público. Preso preventivamente desde dezembro passado, João de Deus, o criminoso, ainda faz “milagres” atrás das grades, segundo o relato de seus advogados. Eles contam que na madrugada do último dia 4 detentos do Núcleo de Custódia de Aparecida de Goiânia, onde o médium está encarcerado, tiveram de amarrar com lençóis um dos presos, que estaria “possuído”. Mesmo contido, o homem se arrastava pelo chão com uma força descomunal e causava apreensão nos companheiros de cárcere. Ao chegar para trabalhar, um funcionário do presídio, espantado diante da cena, correu para a cela de João de Deus e pediu ajuda para conter o “endemoniado”.
Apoiado em um detento e em sua bengala, João de Deus, cujo estado de saúde piorou bastante desde a prisão, caminhou até o local da confusão e ordenou aos presos que soltassem o colega. Em seguida, evocando o afamado médium de outrora, fez uma oração em língua desconhecida e sentenciou: “Abra os olhos”. Como num passe de mágica, o “possuído”, o “endemoniado”, teria encontrado a paz. No dia seguinte, os advogados Marcos Maciel Lara e Anderson Van Gualberto, que atendem João de Deus, pediram a ele que contasse em detalhes o que ocorrera. A dupla estava preocupada com a possibilidade de que os detentos tivessem feito um jogo de cena como forma de atraí-lo e depois matá-lo. O local onde aconteceu o atendimento espiritual de emergência é ocupado por presos de alta periculosidade. Além disso, mesmo que não tivesse ocorrido uma emboscada, a cura praticada por João de Deus, se bem contada, poderia ser usada para atenuar a sua imagem e, assim, ajudar nos esforços para garantir a sua libertação. Os advogados, então, questionaram João de Deus sobre o episódio. A resposta teria sido a seguinte: “Deus me deu autoridade para expulsar aquele espírito maligno. Quando Deus me inspira, eu sinto minha boca ficar como mel”. Difícil de acreditar.
Uma pessoa próxima alega que ele continua a prestar serviços espirituais a figuras importantes dos três poderes, que, diante das circunstâncias, passaram a optar pelo atendimento às escondidas. Ao ressaltar esse ponto, o médium tenta convencer a opinião pública de que a espiritualidade do cliente não era mero pretexto para a série de crimes sexuais dos quais ele é acusado. Há dois meses, João de Deus teria enviado ao ministro aposentado Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), garrafas de água mineral benzida na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), onde o médium atendia antes de ser preso. Ayres Britto confirmou a VEJA ter recebido a encomenda, mas disse não se lembrar se foi antes ou depois da prisão de João de Deus. “Ele mandou mesmo uma água benta, uma coisa assim, ao meu escritório. Uma pessoa me mandou, não lembro quem foi. Nem sei se bebi essa água.”
VEJA teve acesso às cópias das primeiras nove denúncias do Ministério Público de Goiás contra João Deus, por assédio sexual a 48 vítimas. Aos investigadores, as mulheres disseram que, para assediá-las, o médium afirmava ter sido marido delas em vidas passadas. Elas também contaram que sofriam uma espécie de “congelamento” e não conseguiam reagir às investidas. Segundo laudo apresentado pelo MP, congelamento é um fenômeno psicológico denominado “imobilidade tônica”, uma reação física de paralisia extrema apresentada por vítimas de abuso. Os advogados de João de Deus admitem que ele tocava as partes íntimas dos pacientes durante o atendimento, mas alegam que os contatos eram feitos sem “libidinagem”.
Nos esforços para garantir a libertação do cliente, a defesa afirma até que João de Deus é impotente desde 2015 e sofre de sérios problemas de saúde, como hipertensão arterial, insuficiência coronária e cardiopatia. Sob a alegação de que ele poderia morrer na prisão por falta de tratamento adequado, os advogados pediram sua transferência para um hospital. O pedido fracassou. Na quinta-feira 7 houve outro revés: o médium foi condenado em primeira instância a quatro anos de prisão por porte ilegal de armas. De forma correta, com base em provas e testemunhas, a justiça dos homens tem sido implacável com João de Deus.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661