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Já é fácil comprar

Antes de qualquer proposta para facilitar o porte, é preciso mais controle sobre as armas em circulação no país, como comprovam quatro crimes conhecidos

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 jun 2019, 15h33 - Publicado em 14 jun 2019, 07h00

Com algumas mensagens trocadas pelo WhatsApp e pouco mais de 2 500 reais, Guilherme Taucci, de 17 anos, e Luiz Castro, de 25, conseguiram em menos de um mês comprar um revólver calibre 38 carregado. Em 2 de novembro de 2018, Castro mandou um zap para um mecânico do bairro. “Eae, é os caras que quer (sic) comprar o revólver e as munições (…). Arruma 50 balas aí e, se tiver um revólver, a gente negocia o preço”, disse ele. Quinze dias depois, Taucci realizou a compra e comemorou o brinde que ganhou do vendedor: uma bala. “Ele até deixou eu trazer uma para testar no revólver”, escreveu. Em 13 de março, os dois invadiram a Escola Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, onde haviam sido alunos. Taucci descarregou a arma, matando oito pessoas. Os criminosos também carregavam arco e flecha, besta e machadinha, mas as mortes foram todas causadas por tiros. O assassinato de várias vítimas, a esmo, não é crime típico, e seu peso nas estatísticas é desprezível. Mas a facilidade com que dois jovens conseguiram comprar arma e munição levanta um alerta neste momento em que o governo de Jair Bolsonaro tenta flexibilizar o porte: já é relativamente fácil, no Brasil, adquirir uma arma — para defesa pessoal ou para a prática de crimes, tanto faz. O exame de outros três homicídios que mobilizaram a atenção pública — incluindo o recente assassinato do ator Rafael Henrique Miguel — demonstra que há pouco controle sobre armas letais no país.

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Os dados mais recentes do Mapa da Violência atestam que 72% dos homicídios brasileiros em 2017 foram cometidos com arma de fogo. Não existe levantamento nacional preciso sobre o tipo de arma mais usado, mas é seguro afirmar que os fuzis e metralhadoras ostentados por bandidos em favelas dominadas pelo tráfico respondem por uma parte menor dos homicídios (o que não quer dizer, obviamente, que o acesso dos bandidos a armamento pesado não seja preocupante). Segundo pesquisas recentes do Instituto Sou da Paz com base em dados das secretarias de Segurança de alguns estados e do relatório da CPI do tráfico de armamento, a maioria das armas apreendidas no país é de cano curto (revólver e pistolas), de calibre permitido e de fabricação nacional. Boa parte delas teve origem legal. Ou seja, antes de pararem na mão de criminosos, pertenceram a forças policiais e funcionários de empresas de segurança, entre outras categorias que hoje têm direito ao porte. Nos últimos três anos, 840 armas foram extraviadas, perdidas e roubadas de transportadoras de valores, escoltas armadas e empresas de vigilância patrimonial, de acordo com dados da Polícia Federal obtidos pela Lei de Acesso à Informação. Os modelos mais desviados são o revólver calibre 38, a espingarda calibre 12 e a pistola 380.

“ARRUMA 50 BALAS AÍ” – O massacre de Suzano: os assassinos compraram revólver e munição por redes sociais (//.)

A 380 foi provavelmente o modelo usado por Paulo Cupertino Matias, que no domingo 9 matou o ator Rafael Henrique Miguel, de 22 anos, e seus pais. Matias não aprovava o namoro que Rafael mantinha com sua filha de 18 anos. O rapaz foi visitá-lo acompanhado de pai e mãe justamente para discutir essa situação, mas Matias não quis conversa: atirou nos visitantes logo que chegaram à sua casa. Isabela Tibcherani, a filha, disse à polícia que o pai era uma pessoa “possessiva” — e que possuía a arma havia muitos anos. Matias, que era comerciante de autopeças, já fora fichado na polícia por assalto, furto e associação criminosa, nos anos 90. A polícia encontrou em sua loja 26 balas para armas de calibres 380, 38 e 357 e um estojo da Taurus. Ele não tinha licença para essas armas. Até o fechamento desta edição, Matias seguia foragido.

Muitas armas que abastecem o crime vêm do lugar onde deveriam ser mais bem guardadas: depósitos de delegacias e fóruns. Em abril, um policial caiu pasmo ao abrir o cofre da delegacia central de Cotia, em São Paulo, e constatar a falta de 81 armas que deveriam estar ali. Um auxiliar administrativo que trabalhava na repartição foi apontado como suspeito. Ele retirava as armas da delegacia escondidas em caixas de pizza. No Congresso, tramitam projetos de lei que preveem a destruição imediata de armas apreendidas, para evitar que elas se acumulem em lugares propícios à ação de bandidos. Mas não são medidas que despertam especial empenho dos parlamentares.

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ALI PERTINHO – O atirador de Campinas: no Paraguai, armas são vendidas na rua (Patrícia Domingos/Agência Anhanguera de Notícias/.)

Não é só de armas brasileiras que vive o crime. No fim de 2017, Euler Fernando Grandolpho, de 49 anos, fez uma viagem de ônibus a Ciudad del Este, no Paraguai, e voltou de lá com uma pistola CZ 75B, 9 milímetros, de uso restrito. Passou pela alfândega sem ser incomodado. “Comprei meu brinquedo CZ”, escreveu em um bilhete, encontrado entre centenas de pedaços de papel nos quais descrevia sua rotina. Em 11 de dezembro de 2018, ele foi à Catedral de Campinas, no Estado de São Paulo, e disparou 22 vezes. Matou cinco fiéis que assistiam à missa. O Paraguai é o principal corredor de armas ilegais — em geral, de fabricação americana — que entram no Brasil. De lá vem boa parte das armas de grosso calibre, como fuzis e metralhadoras, utilizadas pelas facções criminosas. VEJA esteve em Ciudad del Este e constatou a facilidade com que armas de todos os tipos são comercializadas. “AK-47, AR-15, ponto 40, qual você quer?”, perguntou um vendedor, na rua, à reportagem. Ele ofereceu um fuzil por 12 500 reais, com entrega em São Paulo em três dias. O comércio de armas já montadas, no entanto, tem se tornado mais difícil. O delegado Marcus Vinicius Dantas, da Divisão de Repressão ao Tráfico de Armas da Polícia Federal, lembra que desde o ano passado os Estados Unidos restringiram a exportação de armas para o Paraguai. O resultado foi um crescimento no número de apreensões de peças americanas, como os 117 componentes de fuzil que foram encontrados na casa de um investigado pela morte de Marielle Franco. “Nos Estados Unidos, só a venda de arma completa é regulada por lei. O comércio de peças separadas é livre. E os traficantes se aproveitam dessas brechas e as enviam para cá por encomenda”, diz Dantas.

Além de portar a 9 milímetros comprada no Paraguai — com a qual matou suas cinco vítimas e depois se suicidou dentro da catedral —, Grandolpho carregava um revólver calibre 38 da Taurus, que não foi usado. “O chamado ‘três oitão’ é a arma mais fácil de achar. Se você bater no mercadão aqui perto da delegacia, vai conseguir uma. O comércio paralelo no Brasil é muito forte, infelizmente”, afirma o delegado Hamilton Caviolla, do 1º Distrito Policial de Campinas. O mercado negro de armas no país é sustentado em grande parte por pessoas sem ligação com o crime organizado. É gente que trabalha e em geral não tem passagem pela polícia, mas possui alguma arma (regular ou irregular) que pode ser vendida para levantar dinheiro rapidamente. Esse era o perfil de três pessoas que venderam a arma e a munição aos atiradores de Suzano — um comerciante, um vigilante e um mecânico. Esse mercado informal não costuma ser investigado pela polícia.

COM LICENÇA – Câmera flagra assassinato de um morador de rua em Santo André: o criminoso era colecionador de armas (//.)

Para conseguir comprar uma arma no mercado regular, é preciso preencher alguns requisitos, como comprovação de aptidão técnica e testes psicológicos. Mas os exames não são capazes de filtrar todo bandido potencial. Em 11 de maio, em Santo André, o empresário Marcelo Aguiar, de 36 anos, disparou cinco vezes contra um morador de rua com quem havia se desentendido. Ele era colecionador de armas e atirador esportivo, segundo relatos colhidos pela polícia. Em sua casa, foram encontradas uma carabina e uma espingarda, ambas ilegais. Em março de 2019, ele foi detido por empunhar uma pistola em um bar. Estava embriagado, mas escapou de punição maior porque a arma (talvez a mesma com que mataria o morador de rua) tinha documentação legal. Aguiar, que tinha licença para a posse mas não para portar a pistola fora de casa, pagou a fiança de 6  000 reais e foi embora. Hoje, está foragido da polícia.

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Em maio, o presidente Jair Bolsonaro baixou um decreto que libera o porte para vinte categorias profissionais e amplia o limite de munição e calibre que civis podem adquirir. O decreto, no entanto, foi considerado inconstitucional pelos comitês técnicos da Câmara e do Senado. Na quarta-feira 12, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a suspensão do decreto, que ainda precisa ser chancelada no plenário. Para especialistas em segurança pública, já que se pretende flexibilizar o acesso, seria importante modernizar o sistema de rastreamento e endurecer a punição para o proprietário negligente que perde sua arma. “O governo facilita a circulação de armas, mas não traz nenhuma medida para dificultar o desvio”, diz Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz. O pessoal pró-­armas argumenta que o decreto vai regularizar o mercado negro, mas esquece que a fronteira entre o comércio legal e o ilegal é porosa. Armas registradas podem ser roubadas, perdidas ou vendidas irregularmente — e o aumento da quantidade de armas legais em circulação tende a baixar o preço das armas no mercado informal. O direito à autodefesa é legítimo — mas é preciso critério: já é fácil demais comprar armas no Brasil. Rastreamento e punições severas são necessários.

 

Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639

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