Desde o início das investigações a respeito de uma trama urdida por personagens graúdos nos subterrâneos do Palácio do Planalto, na Esplanada e nos gabinetes das Forças Armadas para melar o resultado das eleições de 2022, suspeitava-se que a história poderia complicar de vez a situação jurídica de Jair Bolsonaro e, em última instância, a depender das provas, até mesmo levá-lo à cadeia. Essa hipótese, antes considerada improvável, ganhou um capítulo especial nesta semana. Está cada vez mais evidente que um grupo ligado ao ex-presidente planejou e queria executar um golpe de Estado no Brasil. Uma parte dos conspiradores massificava notícias falsas sobre fraude nas urnas para justificar uma intervenção, enquanto outra tentava convencer os comandantes militares a aderir. Havia ainda estruturas jurídicas e financeiras para bancar a ação e dar um ar de legalidade ao que era flagrantemente ilegal. O perigoso delírio autoritário chegou a ponto de serem discutidos detalhes de uma minuta justificando a ação e combinando a prisão de autoridades, entre elas, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Um acinte completo.
Essas revelações surgiram a partir de uma megaoperação articulada pela Polícia Federal na manhã desta quinta, 8, num total de mais de trinta mandados de busca e apreensão e quatro prisões, entre elas, a de Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro que teria levado a minuta de golpe para ele revisar. Autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, a ação da PF ordenou ainda a retenção do passaporte do ex-presidente (ele entregou o documento no mesmo dia). Na véspera, Bolsonaro havia feito um comício em São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, onde é alvo de outro inquérito da PF, supostamente por importunar uma baleia durante um passeio de jet-ski numa praia da cidade. Na aparição pública, diante de uma multidão de apoiadores, reclamou ser vítima de perseguição política e, em entrevista a VEJA concedida pouco antes do evento, revelou que ainda sonha em concorrer às eleições ao Palácio do Planalto em 2026 (leia a matéria na pág. 26). Após a investida policial, seu advogado Fabio Wajngarten reforçou a narrativa de assédio judicial sobre o ex-presidente, classificando a operação como “totalmente descabida”.
A questão é que, caso confirmadas as investigações realizadas até agora, será difícil — na verdade, impossível — desvincular Bolsonaro da trama golpista. Em entrevista ao site de VEJA, na tarde da última quinta, o ex-presidente negou que tenha revisado uma minuta golpista trazida por Filipe Martins. “Eu não despachava com ele, nunca vi esse tipo de documento, tampouco assinei algo parecido. Além disso, ninguém dá golpe com documento em papel”, afirmou. O inquérito da PF, no entanto, vai muito além dessa história. No material mencionado na ação, os investigadores encontraram também um vídeo de uma reunião no dia 5 de julho de 2022. Nesse encontro, o ex-presidente pressiona ministros palacianos a endossar o discurso de “fraude” do sistema eleitoral. Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio de Oliveira (Defesa) e Braga Netto estavam lá. Os auxiliares militares, aliás, estão entre os alvos da investigação da Polícia Federal — incluindo Augusto Heleno e Braga Netto — e foram alvos de busca e apreensão na quinta.
O caso respingou ainda em aliados políticos, com destaque para Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro. Ele chegou a ser detido na manhã da mesma quinta devido a uma arma de fogo encontrada em sua casa, cujo registro estava no nome de outra pessoa, o que é ilegal. Segundo a PF, o avanço das investigações relacionadas à trama golpista demonstrou a instrumentalização do PL para “financiar a estrutura de apoio a narrativas que alegavam supostas fraudes às urnas eletrônicas”, de modo a legitimar as manifestações que ocorriam em frente aos quartéis militares. Lançar desconfianças ao sistema de votação, vale lembrar, fazia parte da pregação de Bolsonaro para vender a ideia de que havia um complô destinado a evitar sua vitória.
Essa apuração do roteiro do golpe, não concretizado, felizmente, ganhou impulso graças à colaboração decisiva do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente. Cid foi preso em maio de 2023 após diligências apontarem ter participado de um esquema de fraude de cartões de vacinação dele próprio e de integrantes da família Bolsonaro. Depois disso, uma reportagem de VEJA revelou com exclusividade que a Polícia Federal havia encontrado no celular do tenente-coronel a principal evidência, até então, do planejamento de um golpe: um documento de três páginas, de dezembro de 2022, que continha instruções do que seria feito após a derrota de Bolsonaro e o passo a passo para sua consequente retomada de poder. O plano incluía a anulação do pleito, o afastamento de ministros do STF que supostamente teriam interferido no resultado e a declaração de intervenção militar no país até que novas eleições fossem realizadas.
Com o passar dos meses, as investigações da PF sobre Cid se intensificaram. Em setembro do ano passado, conforme também foi antecipado por VEJA, o tenente-coronel firmou delação premiada com a Polícia Federal, relatando sua participação em dois casos investigados pelo STF — o esquema dos cartões de vacinação e a tentativa de vender joias, relógios, canetas e outros presentes recebidos por Bolsonaro durante o governo. Segundo Cid, os valores das vendas teriam sido repassados ao ex-presidente. Agora, a contribuição do ex-auxiliar ganhou um novo capítulo. Segundo a PF, informações reveladas pelo acordo de delação foram cruciais para as operações desta quinta-feira, 8. De acordo com a investigação, os relatos corroboram outras provas da ocorrência de reuniões com Bolsonaro para tratar do golpe.
Como seria de esperar, a notícia repercutiu como uma bomba no meio político. Entre os aliados de Bolsonaro, previsivelmente, as manifestações reforçaram a narrativa de vitimização do capitão e de “violação de prerrogativas” perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal, na figura do ministro Alexandre de Moraes. Integrantes da ala mais ideológica ligada ao ex-presidente foram algumas das primeiras figuras a se manifestar. “Sabemos como funciona o mecanismo. Muitos não acreditavam quando a gente falava e agora estão vendo tudo acontecer”, publicou a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. O senador Carlos Portinho (PL-RJ), aliado de primeira hora do clã Bolsonaro, afirmou que a operação quer “exterminar politicamente” adversários de Lula. Vice-presidente do PL, o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP) saiu em defesa do presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, preso por porte ilegal de arma na ocasião. “Sublinhamos a importância dos princípios de ampla defesa e do contraditório. Estamos confiantes de que todas as questões serão devidamente esclarecidas”, publicou o parlamentar.
No campo político à esquerda, quem falou de imediato foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. À rádio Itatiaia, ele defendeu que Bolsonaro tenha presunção de inocência, a “que eu não tive”, afirmou, e se disse favorável à investigação correta dos fatos e a eventual responsabilização dos erros. Sessenta anos após o golpe militar de 1964, o Brasil se vê às voltas com a investigação de uma trama destinada a tirar o país dos trilhos da democracia, o que seria um retrocesso gigantesco. As evidências de que essa conspiração realmente aconteceu são claras — e as provas se multiplicam a cada semana. Que os responsáveis sejam punidos, sem exceção — com justiça, sem justiçamento.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879