Mesmo para quem não se espanta com mais nenhum absurdo do Brasil em malversação de dinheiro público, o caso que liga o governo brasileiro a um escândalo na Flórida é de cair o queixo, sob vários aspectos. O primeiro fato fora do comum é que a União possui 65% de participação de um dos hotéis mais luxuosos de Orlando, o Crowne Plaza, localizado nas redondezas do complexo de parques da Disney. Mais surpreendente (e estarrecedor) é que esse empreendimento foi entregue pela Justiça de Mato Grosso a um administrador que não tinha nenhuma experiência prévia na área. Como se não bastasse, esse executivo aproveitou o acesso ao caixa do Crowne para realizar transações estranhas ao escopo do negócio, incluindo a compra de uma fazenda de gado em Mato Grosso por cerca de 22 milhões de reais.
O caso se inicia em 2005, quando Francisco Ferreira Bomfim, um fiscal de rendas aposentado, foi nomeado pela Justiça Federal de Mato Grosso como gestor do Crowne. Nessa posição, ele deveria prestar periodicamente contas do hotel e cuidar apenas da manutenção do negócio, para evitar a desvalorização do patrimônio. Qualquer investimento deveria ser avalizado pelos órgãos de controle — a Justiça Federal, o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União. Não foi o que aconteceu. Na prática, ele comportou-se como dono do negócio. No caso da fazenda de Mato Grosso, por exemplo, Bomfim realizou a compra sem aprovação do sócio minoritário (Zilberto Zanchet , que possui 35%) e sem nenhuma comunicação inicial para a União e os procuradores.
Esse e outros rolos de Bomfim são citados em um relatório da 7ª Vara Federal de Mato Grosso, recentemente concluído. A cargo da desembargadora Ângela Catão, essa auditoria listou mais de uma dezena de operações consideradas suspeitas realizadas por Bomfim. Além da aquisição da fazenda, ele reduziu a participação do sócio (manobra depois revertida nos tribunais) e doou mais de 300 000 dólares em dinheiro à Primeira Igreja Batista Brasileira em Orlando. O generoso dízimo foi realizado sem autorização judicial, a pretexto de que a doação seria compensada em benefícios fiscais previstos pela lei americana. Segundo a correição, ele ainda desviou quase 150 000 reais a título de adiantamento de sua remuneração, também sem autorização judicial.
Ao final desse relatório, Ângela Catão propõe a instauração de um processo administrativo disciplinar para apurar as condutas de Paulo Cézar Alves Sodré, juiz da 7ª Vara de Mato Grosso e responsável por fiscalizar os atos de Bomfim, além do afastamento do magistrado do caso. Procurado por VEJA, Sodré não quis dar declarações, justificando que o processo corre sob sigilo. Limitou-se a informar que fará sua defesa nos autos. Ele, aliás, não é o único que será chamado a prestar contas. A desembargadora determina que cópias do seu relatório sejam enviadas à AGU e ao MPF, com o objetivo de apurar se houve desvio de conduta ou omissão por parte de outros agentes públicos. Ao fim, pede que a Polícia Federal inicie uma investigação criminal sobre o caso.
Depois de anos comandando o hotel a seu bel-prazer, a situação de Bomfim está cada vez mais delicada. Em maio do ano passado, o administrador foi destituído da gestão do Crowne, mas desobedeceu à ordem e continuou atuando no cargo, o que gerou um pedido de prisão. Bomfim foi, então, levado ao Centro de Custódia de Cuiabá, permanecendo pouco tempo por lá. Acabou transferido para um hospital da cidade após diagnóstico de coronavírus e, em menos de uma semana, ganhou um alvará de soltura. A cadeira de administrador do Crowne é ocupada hoje por outro executivo nomeado pela Justiça.
Por ironia, o hotel que é alvo de graves suspeitas de corrupção entrou para a lista de patrimônio da União pelas mãos de um criminoso. A participação de 65% no Crowne fazia parte da relação de bens confiscados do patrimônio de João Arcanjo Ribeiro. Acusado de liderar o crime organizado em Mato Grosso, o Comendador, como ele é conhecido, passou quinze anos na prisão e acabou detido novamente em maio de 2019 por envolvimento com o jogo do bicho. A União, evidentemente, não tem interesse em permanecer como sócia do hotel em Orlando. Por isso, o empreendimento está sendo oferecido no mercado por um valor de aproximadamente 30 milhões de dólares. Se o negócio não for fechado, esse será o preço mínimo para sua aquisição no leilão público agendado para março nos Estados Unidos. Ao que tudo indica, mesmo se a venda for concretizada, o Crowne Plaza ainda continuará sendo tema de processos nos tribunais brasileiros por alguns anos.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721