Na manhã de 14 de julho de 2021, uma mulher chegava para trabalhar na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, quando foi abordada por quatro homens com camisetas e distintivos da Polícia Civil. Os supostos agentes afirmaram que precisavam entrar, pois assaltantes teriam invadido o quintal do sobrado, onde moravam o dono de uma tradicional livraria e a esposa. Os homens fizeram o casal e a empregada reféns e anunciaram um roubo. Levaram mais de 200 relógios, outros bens pessoais e dezessete armas, todas registradas no nome do empresário — um prejuízo de mais de 1 milhão de reais. Na coleção havia três pistolas 9 mm Taurus e Glock, modelo muito cobiçado pelo crime, além de revólveres importados de diversos calibres, espingardas e carabinas de marcas como Rossi e Smith & Wesson. No dia seguinte, três ladrões foram presos em um posto de gasolina. Um ano depois, no entanto, o arsenal roubado ainda não foi localizado — e provavelmente continua nas mãos de bandidos.
O caso é emblemático de um novo tipo de situação que preocupa a polícia e cresce na esteira da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro (PL): o extravio de armas adquiridas legalmente. O empresário assaltado em São Paulo era um colecionador, uma das letras da sigla CAC (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores), um tipo de cidadão autorizado a comprar e a portar armamentos em grande quantidade e cujo número teve um salto nos últimos anos, chegando a mais de 670 000 armamentos registrados dentro desse universo, um recorde (veja o quadro). Foi uma consequência direta de decretos editados pelo governo federal em 2021 que permitiram a quem tem registro de atirador comprar até sessenta armas, sendo trinta de uso restrito, como fuzis (antes, o limite era de dezesseis e oito, respectivamente).
O efeito colateral do expressivo crescimento desse arsenal na mão dos CACs foi transformar esse grupo no alvo preferencial de bandidos. Um estudo do Instituto Sou da Paz, focado em São Paulo, mostra que a grande maioria das vítimas de armas desviadas é de homens (80%) e que quase metade (47%) dos casos ocorreu em residências. No réveillon de 2021, em Oswaldo Cruz, no interior paulista, por exemplo, 28 armas (incluindo dois fuzis, nove pistolas, oito carabinas e quatro espingardas) foram furtadas de um imóvel na zona rural — nenhuma delas foi encontrada. “Há a ideia de que a pessoa vai comprar uma arma para se defender e afastar bandido. Na verdade, é o contrário. Os criminosos vão atrás de lugares com mais armamento”, afirma Bruno Langeani, gerente do instituto.
Especialistas avaliam que o crime organizado mudou a sua dinâmica em razão dessa flexibilização descontrolada: deixou de buscar armas exclusivamente por meio do tráfico internacional. Além de lucrar, mesmo que indiretamente, com roubos e furtos de material bélico, há indícios de que facções como o PCC têm utilizado laranjas para comprar pistolas, fuzis e revólveres como CACs. Um fuzil AR-15, um dos mais cobiçados, custa 70 000 reais no mercado ilegal, mas é vendido na loja por 12 000 reais a um colecionador ou atirador. “O crime se aproveita dessa situação”, diz Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Evidentemente, além do crime, existe toda uma cadeia de negócios legais, que se beneficia desse aumento. A corrida civil por armas acabou alavancando um mercado antes restrito: o dos despachantes. Essas pessoas ajudam o cidadão a reunir a documentação para posse, porte, matrícula em clube de tiro e oferecem pacote até com o revólver incluso. Gustavo Pazzini, de 32 anos, já fazia esse serviço, em 2018. No ano seguinte, quando Bolsonaro assumiu, expandiu os negócios. Abriu o G16 Universidade do Tiro, um misto de clube e loja de armas que funciona 24 horas por dia em São Paulo. A procura aumentou tanto que Gustavo já constrói a quarta unidade. Apoiador do presidente nas redes sociais, o empresário reclama das mudanças barradas pelo Judiciário e pelo Legislativo, como a suspensão pela ministra Rosa Weber, do STF, em abril do ano passado, de vários dispositivos dos decretos de Bolsonaro como a possibilidade de aquisição de armas para a prática de tiro esportivo sem registro prévio e o porte simultâneo de duas armas. “As coisas vêm melhorando, mas acredito que dá para liberar mais”, defende.
Impulsionada por grupos de apoio ao presidente, a intensa circulação de novas armas, obviamente, torna sua fiscalização mais difícil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) contava com 1,54 milhão de registros expirados — mais que o total ativo, de 1,49 milhão. No entanto, foram feitas apenas 11 600 visitas de fiscalização pelo Exército e 2 600 pela PF naquele ano. “Historicamente, a PF e as polícias não têm a menor estrutura para fazer esse tipo de fiscalização”, afirma Ignacio Cano, do laboratório de análise da violência da UERJ. No governo Bolsonaro, os CACs passaram a ter permissão para carregar armamento no trajeto entre a residência e o local de prática, como clubes de tiro, sem restrição de rota ou horário. É uma espécie de porte de arma informal, com fiscalização quase nula. Além disso, colecionadores e atiradores são avisados com 24 horas de antecedência quando há fiscalização em casa, o que permite ocultar eventual ilegalidade.
Apesar dos problemas, Bolsonaro se esforça em emplacar a narrativa de que a flexibilização na compra e registro de armas contribuiu para a redução de homicídios. A tese de mais armas, menos violência, voltou a ser repisada pelo presidente no seu programa de governo. O discurso de que a política de flexibilização de armamentos teria contribuído para a redução de homicídios erra o alvo. Na verdade, o Brasil vive uma tendência de queda desde 2017, quando atingiu o pico, com 64 000 mortes, mas já com Michel Temer, em 2018, esse número havia caído para 57 600 — hoje está em 47 500. Um dos principais motivos da queda foi a diminuição de confrontos entre facções do crime organizado com chacinas em presídios e uma rotina de execuções nas ruas. Hoje o problema está concentrado na região Norte, onde os homicídios ainda crescem. Por outro lado, há sintomas do aumento da violência em outras circunstâncias. Os feminicídios, por exemplo, foram de 929 casos em 2016 para 1 341 no ano passado. Também aumentaram as mortes com arma em que não há certeza sobre a intenção do autor (acidentes, balas perdidas e suicídios, entre outros): em 2017, foram 818; no ano passado, 2 761.
A circulação de armas tem provocado seguidas tragédias como a do último dia 7, quando um empresário de 30 anos, que portava uma arma por ser CAC, atirou e matou um homem de 34 anos que havia batido no seu carro em Mogi Guaçu (SP). No mesmo dia, o campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo, de 33 anos, foi baleado na cabeça em um show em São Paulo, pelo policial militar Henrique Otávio Oliveira Velozo, que estava de folga. Sean Purdy, professor da USP, avalia que o problema da flexibilização de armas nas mãos de civis depende muito do comportamento da sociedade. “Brasil e Estados Unidos são países historicamente violentos”, diz. Por aqui, além de estimular o faroeste urbano, o efeito prático da política bélica foi aumentar o poder de fogo dos bandidos, que conseguem armamentos da pesada via roubos e furtos. Como política de segurança, é inegável: o tiro saiu pela culatra.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802