Servi na Força Aérea Brasileira durante 22 anos, sem sofrer nenhuma punição. Fui condecorado pelo serviço prestado e pela função de instrutor, ministrando aulas sobre atendimento das aeronaves em solo. Em 2000, aposentaram-me forçosamente. Tudo começou dois anos antes, em 1998, quando relatei à FAB o desejo da minha vida: deixar o gênero masculino para ser mulher.
Não sei quando percebi que estava no gênero feminino, para mim sempre foi algo natural. Na pré-adolescência, meus pais notaram que eu era diferente. Meu corpo evoluía como trans. Eu não tomava forma masculina. Em 1970, ninguém sabia direito o que era transexualidade. Meus pais me levaram a uma médica que foi muito atenciosa e percebeu que meu gênero psicológico era feminino. Ela conversou com meus pais, mas eles acabaram me levando a um segundo médico, que entendeu que meu caso poderia ser revertido com hormônios masculinos. Tomei injeções e comprimidos, medicação para me fixar em um gênero ao qual não me sentia pertencente. Sofri efeitos desagradáveis, física e mentalmente. Um terceiro médico suspendeu a medicação ao perceber o erro do tratamento, mas eu já lidava com os efeitos negativos dos remédios. Cresceram pelos no meu corpo. Minha voz, que era fina e feminina, ficou rouca. Eu me senti mal e tive vergonha das mudanças.
Na infância, eu fazia brincadeiras consideradas de menina e de menino. Produzia bonecas com buchas vegetais e soltava pipas. Sempre fui apaixonada por aeronaves. Aos 18 anos, quis servir a meu país ingressando na FAB. Entrei sem problema, tive a oportunidade de trabalhar com aviões e exerci minhas funções como qualquer outro militar. Mas, mesmo trajando-me como homem, ainda me sentia pertencente ao gênero feminino. Ninguém imaginava que eu fosse transexual. Com quase 40 anos decidi que queria fazer a transição, inclusive cirúrgica. Eu me senti encorajada quando, em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização de cirurgias de redesignação de sexo no Brasil. Outro incentivo foi o fato de que a FAB já aceitava mulheres militares. Queria tirar a Maria Luiza de dentro de mim, parar de escondê-la. Tinha a esperança de ser aceita pela FAB, de usar a farda feminina. Então, procurei os médicos da Aeronáutica para comunicar minha decisão. Eles ficaram surpresos. Por dois anos, fui impedida de trabalhar. Sofri ameaças e maus-tratos. Alguns militares tentaram me fazer desistir. Após muita pressão e situações desagradáveis, decidiram-se por me reformar como incapaz definitivamente para o serviço militar. Eu me senti péssima quando fui obrigada a me afastar. Foi horrível saber que não poderia vestir minha farda nem exercer minhas funções. Quem ama o que faz e é obrigado a parar sofre.
Entrei com uma ação judicial para voltar à ativa. A Justiça já anulou a reforma imposta, mas a Aeronáutica interpôs recursos. Busco o direito retroativo às promoções. É meu direito. Farei questão de recebê-las usando a farda feminina, em formatura oficial. Fui militar, continuo militar. Tenho orgulho de tudo o que a FAB representa. Quanto a ser discriminada por alguns militares, sinto indignação e repulsa pelos atos de preconceito.
Quando o cineasta Marcelo Díaz me procurou para fazer um documentário sobre minha vida (o filme Maria Luiza integrou a programação do festival É Tudo Verdade), entendi que era importante me manifestar. Quis contar minha história. Fui a primeira transexual nas Forças Armadas, mas tinha a certeza de que não seria a única. Acredito que a sociedade e os militares podem evoluir com respeito à diversidade. A pressão social me obrigou a ser alguém que eu não era por mais de quarenta anos. Mas não me arrependo das minhas escolhas. Antes tarde do que nunca.
Depoimento dado a Raquel Carneiro
Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635