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Escândalo que lançou suspeitas sobre Rui Costa na pandemia tem novo capítulo

Tribunal diz que não é possível ter havido boa-fé no processo que culminou na fraude milionária que continua pairando sobre o chefe da Casa Civil

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 ago 2024, 09h17 - Publicado em 9 ago 2024, 06h00
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  • Em 2020, o Brasil enfrentava os horrores da pandemia. Ainda não havia vacina, os hospitais estavam superlotados e faltavam material e remédios para tratar os doentes — ambiente perfeito para a atuação de aproveitadores. E eles surgiram aos montes, em vários estados, aplicaram golpes, saquearam dezenas de milhões de reais dos cofres públicos e continuam livres. Na semana passada, a Polícia Federal realizou uma operação de busca para tentar recuperar o dinheiro desviado em um dos casos mais emblemáticos desse período. Sem qualquer cuidado ou apuro formal, o Consórcio Nordeste, grupo que reúne os governadores da região, pagou 48 milhões de reais por 300 respiradores que nunca foram entregues. As investigações já identificaram os principais personagens envolvidos no enredo, mas ainda não foram capazes de apontar a exata responsabilidade de cada um, o que acaba deixando culpados e eventuais inocentes na mesma situação constrangedora. O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, é um exemplo.

    Na época do escândalo, Costa era presidente do Consórcio Nordeste. Seria dele, em princípio, a responsabilidade política pela tramoia. O ministro, no entanto, garante que desconhecia certos detalhes do contrato, que não sabia que a empresa escolhida para fornecer os respiradores sequer era do ramo e afirma que foi ele quem acionou a polícia, assim que tomou conhecimento das irregularidades. A sombra da suspeita, porém, continua pairando. A operação da PF da semana passada mirou o empresário baiano Cleber Isaac Ferraz Soares. Os agentes apreenderam documentos e aparelhos de celular. Segundo as investigações, ele se apresentava como “amigo” do então governador da Bahia, Rui Costa, e de sua esposa, a conselheira do Tribunal de Contas estadual, Aline Peixoto. Cleber e o lobista Fernando Galante atuaram como intermediários do contrato assinado entre o Consórcio Nordeste e a empresa Hempcare para o fornecimento dos respiradores. Por esse “serviço”, os dois receberam nada menos que 12 milhões de reais a título de “comissão” — o equivalente a 25% de todo o dinheiro.

    “COMISSÃO” - Cristiana Taddeo: empresária pagou lobistas que se diziam amigos do governador da Bahia
    “COMISSÃO” - Cristiana Taddeo: empresária pagou lobistas que se diziam amigos do governador da Bahia (Rogério Albuquerque/.)

    VEJA teve acesso a uma auditoria inédita do Tribunal de Contas da União (TCU) que complementa as investigações da Polícia Federal. O relatório mostra que o processo de compra foi eivado de fraudes, do princípio ao fim. A formatação do negócio, segundo os técnicos, foi feita para “dar ares risíveis de legalidade ao procedimento”. Os auditores foram taxativos ao concluir que “não é possível afirmar que houve boa-fé” e que o principal auxiliar de Rui Costa no Consórcio, o então secretário-­executivo do órgão, Carlos Gabas, ex-ministro do governo de Dilma Rousseff, “contribuiu efetivamente para a concretização da irregularidade”. É a assinatura de Gabas que consta no documento que atestou que os equipamentos, que nunca foram entregues, haviam sido recebidos e estavam em “perfeitas condições”. A compra dos respiradores, concluiu a auditoria, “além de evidenciar o dano ao erário, escancara a balbúrdia do processo de planejamento, de orçamento e de mitigação de riscos” do órgão presidido à época pelo atual chefe da Casa Civil.

    A equipe do TCU destaca que os indícios de que a aquisição era suspeita eram evidentes desde o início, mas mesmo assim o negócio foi levado adiante. A Hempcare foi aberta nove meses antes da assinatura do contrato, tinha um capital social irrisório e apresentava como credenciais a “expertise” na importação de roupas de praia da China e medicamentos à base de maconha. “Se eu trago biquíni, trago respirador”, comentou à época Cristiana Prestes Taddeo, dona da empresa, convidada a assumir a tarefa de comprar os respiradores, já que não houve licitação. Depois do escândalo, ela devolveu a parte do dinheiro que havia recebido, fez um acordo de delação premiada com a Justiça, contou detalhes da trapaça e se livrou da prisão. O TCU não poupou os gestores do Consórcio Nordeste: “É razoável afirmar que era possível ao responsável ter consciência da ilicitude do ato que praticara e que lhe era exigível conduta diversa daquela que adotou, consideradas as circunstâncias que o cercavam. Ademais, não foi possível constatar excludentes de ilicitude, de culpabilidade e de punibilidade”, descreveu a auditoria, em referência aos procedimentos administrativos adotados por Gabas.

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    VEJA também teve acesso a um laudo do Ministério Público que apresentou em números a dimensão da fraude. Os peritos concluíram que os respiradores vendidos ao Consórcio Nordeste apresentavam sobrepreço de até 318% na comparação com equipamentos oferecidos por outros fabricantes. O documento ressalta ainda que, se os respiradores tivessem sido entregues, o que não aconteceu, ainda assim os cofres públicos teriam amargado prejuízos de mais de 28 milhões de reais. O inquérito que há quase quatro anos mantém Rui Costa na incômoda situação de investigado ganhou robustez com o acordo de delação premiada da dona da Hempcare. Em conversas com interlocutores, Cristiana contou que Cleber Isaac, o empresário que intermediou o contrato, falava em nome do governador, dizia que era o melhor amigo dele e que, por isso, mandava na Bahia. Nas negociações para a aquisição dos aparelhos, segundo a empresária, ele mostrava prints de supostas conversas com Rui Costa e tinha registrado em seu celular um contato com o nome de “Doutor”. Seria o número do telefone reservado do então governador. O negócio, portanto, dependeria dele para ir em frente. E, para ir em frente, era preciso pagar a “comissão”. Isaac, evidentemente, pode ter inventado essa história.

    BOLSOS CHEIOS - Isaac e Galante: 12 milhões de reais por intermediação
    BOLSOS CHEIOS - Isaac e Galante: 12 milhões de reais por intermediação (@cleberisaacferraz/Instagram;/Reprodução)

    Por ter Rui Costa no rol de investigados, o processo que começou na Bahia foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), foro do petista quando ele era governador, deslocado para o Supremo Tribunal Federal (STF) após a nomeação dele para a Casa Civil e, desde maio do ano passado, está sob responsabilidade da Justiça Federal baiana. Segundo a Procuradoria-Geral da República, com o caso “inaugurou-se um modelo licitatório em que a empresa contratada não tinha experiência no objeto contratual, os valores alçam patamares milionários, recursos públicos são pagos antecipadamente e o resultado dessa mistura de ingredientes não poderia ser outro senão o desperdício de dinheiro público”. O parecer diz ainda que o caso tem indícios de estelionato, fraude em licitação, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e corrupção, “com a possível atuação criminosa do Governador do Estado da Bahia Rui Costa”.

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    O ministro não fala sobre o assunto. Em nota divulgada em abril, antes da última incursão policial, reafirmou que partiu dele a ordem para que o caso fosse apurado e disse que espera que “a investigação seja concluída e os responsáveis punidos por seus crimes”. Quando prestou depoimento à polícia, em 2020, explicou que, ao autorizar a contratação da Hempcare, não atentou a detalhes estranhos como, por exemplo, o nome da empresa. “Essa denominação não me chamou a atenção, até porque eu não tenho pleno domínio da língua inglesa”, relatou. Hemp é maconha em inglês; care é cuidado. O ministro disse também que, na época, sua equipe deu aval técnico para a aquisição dos respiradores da forma como foi feita. Se estiver correto, Costa seria vítima dos golpistas e não suspeito. Procurado, Carlos Gabas e os demais investigados não quiseram se manifestar. Cabe à Polícia Federal esclarecer quem efetivamente fez ou deixou de fazer algo que permitiu a fraude. O inquérito não tem data para ser concluído.

    Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905

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