No início de 2022, Brasília foi tomada por rumores sobre a iminência de um escândalo que envolveria uma ministra do governo, políticos e autoridades do primeiro escalão da República. Os detalhes, segundo os mesmos rumores, seriam capazes de incendiar a campanha eleitoral que se avizinhava. Na época, o presidente Jair Bolsonaro recebeu do então diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, informações sobre o caso. Em seu relato, Ramagem confirmou que havia muita “fofoca”, mas também que parte das informações que circulavam tinha fundamento. O problema estava nos detalhes, que, se fossem tornados públicos, certamente provocariam turbulências na vida pessoal de alguns e enormes desgastes políticos na vida de outros — ou, dependendo do personagem, as duas coisas. A confusão, inclusive, respingaria no próprio governo. O diretor da Abin tinha em mãos uma relação de pessoas que poderiam ser atingidas. “Meu nome não está aí, não, né?”, perguntou Bolsonaro. Ramagem riu e respondeu que não.
Meses depois dessa conversa, no segundo semestre do ano e já na pré-campanha eleitoral, VEJA revelou que a então ministra-chefe da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, havia sido alvo de espionagem clandestina. A revista teve acesso a um dossiê que circulou no Palácio do Planalto e acabou enviado para alguns gabinetes do Congresso. O conteúdo do material deixava claro que a privacidade da ministra havia sido criminosamente invadida. Ela teve seus passos monitorados de setembro a dezembro de 2021. E não apenas ela. O então senador Alexandre Silveira (PSD-MG), hoje ministro de Minas e Energia, também foi vigiado no mesmo período. Os autores do documento informavam que a ex-ministra e o atual ministro estiveram no mesmo lugar em várias ocasiões, em Brasília e em outros estados, em agendas oficiais e extraoficiais. Constataram isso a partir da análise dos celulares de ambos, utilizando ferramentas de geolocalização. O mesmo cruzamento foi feito em relação a outros personagens da República.
![1—IMG_4108.JPG FAMÍLIA NA MIRA - Carlos (à dir): PF afirma que o filho do presidente seria usuário do esquema de espionagem](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/02/1-IMG_4108.JPG.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Dois anos depois da reunião no Palácio do Planalto, o hoje deputado federal Alexandre Ramagem foi alvo de uma operação de busca por suspeitas de ter usado a Abin com objetivos políticos. Na segunda-feira 29, foi a vez de o vereador Carlos Bolsonaro ter seus endereços revistados e telefones e computadores apreendidos pela Polícia Federal. O filho 02 do ex-presidente é apontado como destinatário de informações colhidas clandestinamente pela Abin. A PF acusa a agência de espionar políticos, magistrados, advogados e jornalistas durante o governo passado, usando um programa de monitoramento por geolocalização. A ferramenta permite saber onde uma pessoa está ou esteve, o dia e a hora exata, quem está ou esteve com ela — tudo em tempo real, sem nenhum tipo de controle ou fiscalização, apenas digitando o número do celular do investigado. O sistema teria sido utilizado mais de 60 000 vezes.
![48132381928_1f043b996d_o.jpg COINCIDÊNCIA - Ramagem e o dossiê apócrifo: o ex-diretor da Abin é suspeito de monitorar adversários](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/02/48132381928_1f043b996d_o.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Fora as coincidências, não há nenhuma evidência de que os arapongas que rastrearam os celulares de Flávia Arruda, do ministro Alexandre Silveira e de outras pessoas da lista citada por Ramagem na reunião com o presidente pertenciam formalmente ao sistema federal de inteligência. O histórico da Abin, porém, recomenda que não se descarte essa hipótese de imediato. Nas últimas décadas, a agência foi cenário de inúmeros escândalos, quase sempre tendo interesses políticos como pano de fundo. Nas duas primeiras passagens de Lula pelo Palácio do Planalto, por exemplo, a Abin teve cinco chefes diferentes. Dois deles foram demitidos depois que seus comandados foram pilhados em ações clandestinas e ilegais. No caso mais grave, os espiões montaram um grupo para investigar o dono de um banco tido como adversário do governo. Para isso, lançaram mão de toda sorte de métodos ilegais. Instalaram escutas clandestinas, interceptaram ligações telefônicas, bisbilhotaram a vida de magistrados, políticos e jornalistas. Revelado, o caso por pouco não se transformou numa crise institucional — mas ninguém foi efetivamente punido. O diretor da agência foi afastado do cargo, mas não sofreu nenhuma outra sanção. O delegado responsável pela operação se elegeu deputado federal. Depois, casou-se com a neta de um banqueiro e deixou o país. Nenhum governo escapou ileso (veja o quadro).
O inquérito que investiga a atuação da Abin no governo Bolsonaro é sigiloso e, portanto, não se conhecem os detalhes. Pelo que se sabe até agora, a Polícia Federal identificou que o programa de geolocalização First Mile foi usado ostensivamente em 2020, especialmente durante as eleições municipais. Foram milhares de consultas nesse período, quando a agência era comandada por Alexandre Ramagem. A suspeita é que existia uma espécie de “Abin paralela”, uma organização informal que teria a participação de dirigentes do órgão, policiais e espiões voltados a bisbilhotar a vida de alvos predeterminados e investigar clandestinamente eventuais adversários do governo. Sem autorização legal, a ferramenta de fabricação israelense, adquirida no fim de 2018, durante o governo do presidente Michel Temer, permite rastrear milhares de números de telefones simultaneamente. O ministro Alexandre de Moraes, responsável pela investigação que tramita no Supremo Tribunal Federal, teria sido um dos alvos do grupo.
![GettyImages-1966344382.jpg TUDO IGUAL - O presidente Lula e a sede da Abin, em Brasília: problemas no passado, no presente e, se nada mudar, provavelmente também no futuro](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/02/GettyImages-1966344382.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
No papel, a Abin tem a função de produzir conhecimentos destinados a assessorar o presidente da República em assuntos relativos à segurança do Estado e da sociedade. Não há, porém, um detalhamento sobre o que isso exatamente significa, nem tampouco uma delimitação de até onde a agência e seus espiões estão autorizados a operar. Na ditadura militar, esse trabalho de coleta de dados era realizado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Não havia limites. Em nome da segurança do Estado e da sociedade, os espiões podiam praticamente tudo — grampeavam, perseguiam, ameaçavam, prendiam e matavam os adversários do regime. A Abin, que foi criada em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, não chega nem perto disso, é óbvio, mas herdou certos vícios do velho aparato estatal que não podem e não devem ser tolerados numa democracia. Servir a interesses políticos, por exemplo. Não importa se o alvo é de direita ou de esquerda e se a motivação é legítima ou não. Há limites que não podem ser ultrapassados.
O problema é que esses limites não são claros. Fernando Henrique foi alvo de sua própria criação. Num dos momentos mais definidores de seu governo, durante o processo de privatização do sistema de telefonia, foram divulgadas gravações de diálogos entre ministros e assessores que davam a entender que havia direcionamento para favorecer algumas empresas. O escândalo provocou a demissão do ministro das Comunicações, do presidente do BNDES e de dirigentes do Banco do Brasil. Comentava-se à época que, se a íntegra do material fosse divulgada, a reputação do próprio presidente poderia ser gravemente atingida. Mais tarde, descobriu-se que as gravações que provocaram a hecatombe estavam em poder da Abin. Pela versão oficial, como se tratava de um assunto de interesse do presidente, a agência estava monitorando o processo de privatização e achou as fitas debaixo de um viaduto em Brasília — por acaso. Parece brincadeira, mas foi essa a justificativa da Abin.
A largueza do que pode ser considerado informação de interesse do presidente da República, combinada com a amplitude do que pode ser definido como ameaça à segurança do Estado, abre um leque imenso de opções para o que pode e o que não pode ser investigado pela Abin. Imagine, por exemplo, que o presidente da República seja informado de que está em andamento uma conspiração para destituí-lo do cargo. É um caso que ameaça a segurança do Estado? Sim. Em tese, portanto, ele poderia acionar a Abin para colher mais informações ou a própria Abin poderia fazer isso por conta própria para alertar o mandatário. Ainda hipoteticamente, imagine que entre os conspiradores houvesse um ministro importante. O presidente poderia pedir à Abin para bisbilhotar a vida do ministro? Em tese, sim, desde que usasse apenas métodos legais. Bolsonaro acreditava que as urnas eletrônicas poderiam ser fraudadas e que o ministro Alexandre de Moraes atuava para impedir sua reeleição. “O presidente da República pode, sim, pedir para a Abin checar a informação sobre uma suspeita”, diz Jorge Zaverucha, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e autor de artigos sobre serviços de inteligência. “O problema é a linha tênue que separa uma apuração de um fato de interesse do Estado e outro de interesse exclusivamente pessoal. É nesse vácuo que opera a espionagem política, problema que só uma legislação mais clara e uma fiscalização rigorosa podem evitar”, completou.
Afeito a teorias conspiratórias, Jair Bolsonaro editou, em 2020, um decreto que estabelecia que órgãos como o Ministério da Justiça, a Casa Civil, as Forças Armadas e a Diretoria de Inteligência da Polícia Federal eram obrigados, sempre que solicitados e sem a necessária autorização do Poder Judiciário, a encaminhar informações — ainda que confidenciais ou que envolvessem apurações em curso — à Abin. Na prática, a medida dava margem para que o mandatário soubesse de antemão de investigações sigilosas e para que arapongas manuseassem procedimentos aos quais jamais poderiam ter acesso. Coube ao Supremo Tribunal Federal traçar balizas mínimas contra o compartilhamento de dados e deixar explícito que é ilegal que a Abin receba esse tipo de informação, mesmo a pretexto de haver interesse na segurança do Estado. O decreto foi revogado em setembro pelo presidente Lula, que, ao assumir, e também por não confiar nos militares, decidiu transferir a Abin do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para a Casa Civil, uma pasta política, comandada por um ministro petista, mudança que não resolveu os problemas do órgão e ainda alimentou vários rumores.
![GettyImages-1373490430.jpg ADVERSÁRIO - Moraes: o ministro seria um dos alvos do monitoramento ilegal](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/02/GettyImages-1373490430.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
A falta de regras objetivas é agravada pela absoluta ausência de fiscalização do trabalho da agência. A polícia investiga a denúncia de espionagem política desde o final do ano passado, quando agentes recolheram documentos na sede da Abin e prenderam dois servidores que supostamente usaram o First Mile. Uma suspeita como essa, em qualquer país civilizado, mobilizaria o Congresso. Aqui, não. A Comissão de Controle de Atividades de Inteligência (CCAI), colegiado formado por deputados e senadores, é absolutamente inoperante. Nos Estados Unidos, o Comitê de Inteligência do Senado é acionado diante de qualquer rumor de ilegalidade em algum dos vários órgãos de inteligência do país. Mesmo assim, isso não impediu a realização de operações clandestinas e casos de tortura envolvendo espiões americanos. Por aqui, uma das últimas reuniões da CCAI foi em outubro, ocasião em que Luiz Fernando Corrêa, o atual número 1 da Abin, prestou depoimento. Depois disso, os parlamentares solicitaram à agência, à Polícia Federal, ao STF e à Controladoria-Geral da União documentos e informações sobre a compra e o uso do tal programa de georreferenciamento. Não receberam resposta — nem cobraram. Os arapongas, cedo ou tarde, voltarão a produzir novos escândalos.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878