O que os olhos não viam o olfato já denunciava. Por volta das 5 horas da manhã da terça-feira 27, com temperatura próxima dos 23 graus, o sereno da floresta tropical ainda se espreguiçava no horizonte da região noroeste de Mato Grosso — no caminho entre o centro do município de Colniza, a 1 000 quilômetros da capital do estado, Cuiabá, e o distrito de Guariba —, mas o cheiro de algo chamuscado não deixava dúvidas. A paisagem que logo se descortinaria seria a das queimadas fora de controle que ardem, ferem e infernizam a Amazônia.
Do começo do ano para cá, Mato Grosso registrou o maior número de focos de incêndio na Floresta Amazônica, com mais de 15 000 ocorrências. Em segundo lugar vem o Pará, com 10 000. Também destacados no noticiário sobre o assunto, que tomou conta da imprensa, Acre e Rondônia contabilizaram, respectivamente, cerca de 3 000 e 6 000 casos de queimada. O véu de fumaça que encobriu a região escureceu, e muito, a reputação internacional do Brasil — fato agravado pela troca de farpas entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron, da França.
Nas últimas semanas, a Amazônia chamou a atenção do mundo graças a imagens aéreas, obtidas por satélites, que comprovam o que acontece em terra. Fotos da Nasa, a agência espacial americana, revelaram rastros de fumaça saindo dos estados do Amazonas, Rondônia e Mato Grosso (leia o artigo). O fogo na Floresta Amazônica, no entanto, não começou, é claro, da noite para o dia. O desmatamento ilegal, executado ao longo de meses e que teve aumento de quase 90% em junho de 2018 em comparação ao mesmo mês deste ano, é o que explica a crescente quantidade de incêndios, conforme atestam estudiosos do tema, como os cientistas ligados ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
“É evidente que as queimadas estão diretamente relacionadas a esse aumento brutal da destruição do bioma. O fogo representa o último estágio desse processo de devastação”, afirma a geógrafa paraense Ane Alencar, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Em março, Mato Grosso despontou como o estado que mais desmatou na Amazônia brasileira, com 37% do total registrado naquele mês. A tendência iria se confirmar em abril, com 31%. “A lógica do desmatamento é a seguinte: depois de cortada a floresta, a área leva um tempo para secar, e só então é que começam os incêndios descontrolados”, explica Ane. O período de seca, de agosto a setembro, é justamente quando a Amazônia costuma arder em chamas. Contudo, neste ano as queimadas se alastraram com maior intensidade. Na quinta 29, um decreto do governo “proibiu” as queimadas por sessenta dias. O estrago, porém, já estava feito — mais do que feito.
Desde o último dia 23, eclodiram protestos — no Brasil e no resto do globo, sobretudo na Europa — exigindo proteção à maior floresta tropical do planeta. Em represália ao país, França, Irlanda e Finlândia ameaçam não assinar o acordo entre União Europeia e Mercosul, anunciado em 28 de junho e que demorou duas décadas para se concretizar. Em encontro do G7, que reuniu em solo francês as sete nações mais industrializadas do mundo, o anfitrião Macron chegou a cogitar pleitear na ONU o status de “território internacional” para a Amazônia. Era uma ameaça sem nenhuma chance de progredir — o debate em torno do assunto está ultrapassado (leia a reportagem). Apesar disso, ela só ajudou a — com o perdão do verbo — incendiar os ânimos entre o francês e Jair Bolsonaro. O ponto mais vergonhoso do embate ficou por conta do brasileiro, que, numa rede social, endossou uma insinuação desrespeitosa à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. O presidente da França reagiu: “Espero muito rapidamente que eles (os brasileiros) tenham um presidente que se comporte à sua altura”. No fim das discussões, o G7 ofertou auxílio de 20 milhões de euros (algo em torno de 92 milhões de reais) para o controle dos incêndios amazônicos. Até a tarde da quinta-feira 29 não se sabia se o governo aceitaria a ajuda.
Enquanto isso, no cenário da polêmica, a floresta, a situação continuava digna de alarme. Na terça-feira 27, a reportagem de VEJA acompanhou uma equipe do Ibama, o órgão federal de fiscalização ambiental, em uma ação contra desmatamento ilegal na região da cidade de Colniza (MT). Dois veículos participaram da operação, que envolvia a fiscalização de uma área de mais de 1 000 hectares com vegetação suprimida. Os oficiais passaram o dia verificando diferentes pontos do local, porém não encontraram os responsáveis pelas queimadas.
“Do que observamos, há padrões que indicam claramente a abertura de campos para pecuária. A extensão das áreas, por exemplo, demonstra que se trata de fazendas”, afirmou um servidor presente na ação, que pediu para não ser identificado, temendo represálias. “Essa é a história da Amazônia. Primeiro se escolhe um local em que se pode aproveitar a extração de madeira. Depois de cortar tudo, o criminoso ainda joga fogo na floresta para transformar a área em pasto”, declarou ele. Rastros identificados pelos fiscais mostravam que as queimadas tinham ocorrido havia menos de uma semana. “A prova de que foram intencionais é que as casas de madeira nos terrenos continuam intactas”, disse um dos integrantes do grupo do Ibama que participou da operação de fiscalização.
Os incendiários não poupam sequer as reservas. Na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo foi registrado um fogaréu no último dia 24 — uma equipe da Funai evitou que se alastrasse. Ao lado dela, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt também foi alvo de criminosos. Na avaliação dos nativos, as invasões teriam aumentado a partir do início do governo Bolsonaro. De acordo com o presidente da associação de moradores da Guariba-Roosevelt, o pedagogo Ailton Pereira dos Santos, o sentimento por lá é de impotência: “Vemos gente que invade para extrair madeira, atear fogo, e não temos o que fazer”.
Para o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo, especialista em questões ambientais e membro do IPCC (braço da ONU que estuda as mudanças climáticas), a Amazônia é estratégica para o Brasil por uma série de razões: “Ela garante o ciclo hidrológico para a agropecuária e mantém a biodiversidade. Temos de explorá-la de forma sustentável. O pior é queimá-la, transformando-a numa grande emissora de gases do efeito estufa”. O alerta já foi mais do que reiterado. Mas o cheiro de algo chamuscado teima em envenenar o ar da floresta.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650