A transição da mobilidade baseada em combustível fóssil para a elétrica, a chegada de veículos autônomos em um futuro próximo e as mudanças comportamentais na relação com o veículo (dá-se importância a ele como um serviço, e não mais como propriedade) vão revolucionar a mobilidade de uma forma somente vista antes com a invenção do carro, no fim do século XIX, quando cavalos eram o principal meio de transporte.
Os últimos dez anos valeram por 100 quando o assunto é transporte urbano. Em 1913, quando Henry Ford mudou a história ao criar a linha de produção a fim de fabricar carros padronizados em massa, ele resolveu um “problema de poluição” da época: as ruas de Manhattan, por exemplo, inundadas de esterco de cavalo e lixo, foram ficando mais limpas com a chegada dos automóveis. Desde então, os carros a combustão evoluíram muito pouco em termos de eficiência energética. O sistema de queima do combustível fóssil, por motivos de leis da física e da termodinâmica, é limitado a uma eficiência máxima de 45% a 50% em carros.
Como referência, praticamente quase todos os motores elétricos atingem facilmente 85% de eficiência, chegando a 95% em alguns casos especiais. Além disso, o motor elétrico tem uma relação peso-potência bem mais elevada que a dos motores convencionais e é muito mais simples de fabricar. A maior restrição da evolução desses veículos sempre foi a bateria, ou a capacidade de armazenar energia elétrica.
A bateria teve uma grande evolução na década de 90, devido à necessidade de celulares e computadores serem móveis. Isso levou à invenção da bateria de lítio, muito mais leve, com mais capacidade de armazenar energia e muito mais prática que as baterias convencionais de chumbo ácido.
A principal vantagem, na prática, é o custo operacional dos veículos elétricos. Para “encher o tanque”, ou seja, recarregar um veículo elétrico, o custo gira em torno de 3 a 5 reais, dependendo do preço da energia na localidade. Para um veículo a gasolina, os valores podem passar dos 200 reais. Outro ponto importante é o custo de manutenção ser muito menor: enquanto um carro a combustão tem cerca de 2 000 peças móveis, um carro elétrico tem vinte. Considerados todos esses fatores, hoje em dia, o custo por quilômetro rodado de um automóvel elétrico já é muito menor que o do automóvel a combustão — e essa diferença só vai aumentar com a massificação de produção e a melhoria do armazenamento de energia nas baterias.
Nas questões de poluição do ar, mesmo que a matriz energética de um país utilize combustível fóssil para gerar eletricidade, a grande vantagem do carro elétrico é a não emissão de gases dentro das cidades onde mora o maior número de pessoas por área, algo que melhora a qualidade do ar. Em países como o Brasil, por exemplo, em que mais de 40% da população tem problemas respiratórios, o impacto seria significativo, já que doenças como bronquite e asma são agravadas pelo ar impuro. Sem contar a poluição sonora — o motor elétrico é bem mais silencioso.
Outro ponto de mudança para o futuro da mobilidade é a questão da propriedade do veículo. Se há vinte anos os jovens, como eu, sonhavam com a carteira de habilitação e um automóvel para ter a liberdade de passear ou viajar com a namorada, hoje os objetivos são outros. O carro é um passivo — ele é caro, burocrático (pontos na licença, carteira de motorista, IPVA, seguro etc.), não há onde estacioná-lo, você não pode beber quando sai com ele. Deixou de ser um ativo. Com a evolução dos aplicativos, como o Uber, a mobilidade passou a ser vista como serviço, e não como propriedade.
“Quando surgiu o carro, as ruas ficaram mais limpas, sem a sujeira dos cavalos. Evoluímos pouco desde então”
Se a eletrificação e o uso da mobilidade como serviço vão trazer vantagens para os indivíduos e para a sociedade, a grande transformação virá quando o transporte for totalmente automatizado. Carros autônomos vão chegar na próxima década. Tecnologias essenciais para o veículo sem motorista, como a comunicação que se utiliza de 5G, já estão sendo implementadas, enquanto a evolução de processadores especializados em machine learning (aprendizado de máquina) vai fazer essa tecnologia viável e, mais uma vez, diminuirá radicalmente o custo do transporte.
Pense em uma corrida de Uber. Com a eletrificação, o custo do veículo e o custo da energia serão menores. Se a corrida envolver um veículo autônomo de nível 5 (máxima automação), não haverá o custo do profissional ao volante — outros postos de trabalho se abrirão com a nova tecnologia. É importante lembrar que esse transporte de passageiros terá mais segurança, o que resultará em vidas humanas salvas nas ruas e rodovias do Brasil.
Para variar, o país não está atualizado em nenhuma dessas tecnologias. Possui uma matriz energética incrivelmente renovável por causa das hidrelétricas e também tem potencial solar e eólico gigantesco. Seria o caso perfeito para a eletrificação real do transporte, diferentemente do que se verifica na China, Estados Unidos ou Alemanha, que têm matrizes energéticas baseadas em carbono. Se o Brasil direcionar sua indústria para tal transformação, criaremos centenas de milhares, talvez milhões, de empregos nesses setores, além de democratizar e socializar o transporte, baixando o custo para a sociedade e diminuindo a emissão de poluentes. A economia do Estado seria enorme, em gasto com transporte e saúde.
Devemos ter uma visão crítica diante do discurso de pseudocientistas, da indústria petrolífera e do lobby de muitas montadoras, que vão tentar nos enfiar goela abaixo tecnologias antigas, como fazem atualmente. Temos uma chance única e precisamos agarrá-la, sob pena de aceitar as consequências do atraso.
* Lucas di Grassi é piloto de Fórmula E
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646