“É apenas o começo”
Depois do decreto das armas, que terá impacto irrisório no nível alarmante de violência no país, Bolsonaro anuncia que o próximo passo é permitir o porte
Jair Bolsonaro estava exultante na terça-feira 15, quando se dirigiu ao púlpito montado no 2º andar do Palácio do Planalto. O microfone falhou três vezes até que ele conseguisse pronunciar a frase de efeito que ensaiara. “Para lhes garantir o legítimo direito à defesa, eu, como presidente, vou usar esta arma aqui”, disse, sacando uma caneta Bic do bolso, com a qual assinou o decreto que facilita a posse de armas no Brasil. Pouco depois, numa evidência de que a operação de marketing estava previamente montada, o Palácio do Planalto divulgou um vídeo promocional que mostrava a caneta como a arma que deu aos “cidadãos de bem” o direito que lhes era sonegado.
A expectativa de aplausos pelo primeiro passo no cumprimento de um ponto programático da campanha de Bolsonaro, no entanto, não se realizou. O presidente foi criticado pelos que se opõem à liberação de armas, o que era previsível — mas também pelos próprios armamentistas, que consideraram o decreto suave demais. As alterações que a prosaica caneta do presidente fez em um decreto anterior, de 2004, são substantivas: na prática, a liberação da posse àqueles que vivem em estados com taxa de homicídios superior a 10 para cada 100 000 habitantes incluiu todo mundo, os 26 estados e o Distrito Federal. A licença ainda é um processo burocrático demorado — e muito caro. Este, porém, pode ser apenas o começo. O governo espera que seus aliados no Congresso levem a pauta armamentista adiante — e no horizonte está o direito não só à posse (ter uma arma em casa), mas ao porte (carregá-la na rua).
Uma pesquisa do Datafolha feita em 18 e 19 de dezembro mostrou que, mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, só uma minoria de 31% é a favor da flexibilização das regras para a posse de arma (mais sobre a pesquisa na pág. 48). Mas é uma pauta que agrada aos seguidores mais aguerridos do presidente, aqueles que estão sempre eletrizados nas redes sociais. “Esse é apenas o primeiro passo”, anunciou o presidente no Twitter, para acalmar os que julgaram o decreto excessivamente tímido. Os passos seguintes serão dados no Legislativo. Parlamentares da chamada “bancada da bala” preparam um pacote de medidas que prevê direito ao porte, redução de tributos sobre armamentos e munições, anistia a donos de armas sem registro, diminuição da idade mínima de compradores de armas de 25 para 21 anos e abertura do mercado para empresas estrangeiras. Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), aliado do presidente, é o autor do projeto de lei que prevê a revogação do Estatuto do Desarmamento. O texto já foi aprovado em todas as comissões da Câmara e só precisa da boa vontade do presidente da Casa para entrar em votação. Rodrigo Maia (DEM-RJ), se reeleito para o cargo com o apoio do PSL, sabe que sofrerá pressões para resolver a questão. “No passado, nós penávamos para fatiar os projetos e tentar pelo menos aprovar o porte rural — e nem isso foi possível. Agora, o cenário mudou. Vamos fazer cabelo, barba e bigode”, celebra o líder da Frente Parlamentar de Segurança, Capitão Augusto (PR-SP).
Para ser aprovado, o projeto de lei precisa de maioria simples — metade mais um do plenário da Câmara e do Senado. Nos cálculos da consultoria Arko Advice, a base de apoio de Bolsonaro, formada basicamente pela bancada BBB (da bala, do boi e da Bíblia), conta com cerca de 250 parlamentares. Mas a tarefa não será tão simples. Primeiro, porque a prioridade máxima do governo é a reforma da Previdência, que deve render desgaste. Segundo, porque a opinião pública não é majoritariamente favorável. Terceiro, porque o porte não é consenso nem entre os aliados — parte da bancada evangélica é contra e o ministro da Justiça, Sergio Moro, já disse que não há “nenhum movimento” em sua pasta nesse sentido. “Uma coisa é falar de posse, que está restrita à casa. Outra coisa é o porte, que atinge o coletivo e invade a liberdade dos outros”, diz Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé, entidade que analisa a segurança pública, sediada no Rio de Janeiro.
Especialistas ouvidos por VEJA consideram o decreto de Bolsonaro positivo em um sentido: definiu critérios mais objetivos para autorizar a posse de arma. Antes, a concessão da licença dependia só da decisão subjetiva de um delegado da Polícia Federal. Mas a ampliação da validade do registro de cinco para dez anos é problemática, pois enfraquece a fiscalização sobre as armas. “Muita coisa pode acontecer em dez anos. Pode-se responder a um processo, cometer um crime, ter a arma roubada”, diz Melina Risso, doutora em administração e governo pela FGV.
O direito a ter uma arma de fogo em casa pode ser defendido pelo princípio abstrato da liberdade individual. Mas é um equívoco sugerir, como Bolsonaro tem feito em entrevistas, que a medida trará melhoria efetiva à calamitosa segurança pública do Brasil, país que tem batido a marca de mais de 60 000 homicídios por ano. Armas legais nem sempre são usadas para fins legais — metade das mulheres assassinadas pelo parceiro em 2016 foi vítima de armas de fogo. Com frequência, a arma registrada cai na mão de bandidos — 70% do armamento apreendido com criminosos na Região Sudeste em 2014 era de fabricação nacional e de comercialização permitida.
A posse da arma em casa também não protege o proprietário nos casos mais comuns de crime: em São Paulo, o estado mais populoso da federação, dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que apenas 2,5% dos roubos foram feitos em residências e 5,9% em estabelecimentos comerciais — o restante acontece na rua. Ainda assim, os números de homicídio em casa são expressivos. Um levantamento nacional na base do Datasus, realizado pelo Instituto Sou da Paz, revela que, em 2016, catorze pessoas, em média, morreram por dia em casa por arma de fogo, e 87% dos casos se deram em circunstâncias criminais (a base não distingue entre casos de violência doméstica e de latrocínio). Os dados gerais revelam, portanto, que o epicentro da violência está na rua, e não em casa, razão pela qual o decreto de Bolsonaro terá efeito irrisório sobre o nível alarmante do faroeste brasileiro.
A ideia de que uma arma pode salvar seu proprietário é duvidosa. O índice de sucesso dos que tentam a autodefesa é baixo (veja o quadro à dir.). O consultor de segurança e ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel está convicto de que o direito à posse (ou ao porte) não facilitará a autodefesa do cidadão comum. “Se você não vai ter tempo para treinar, nem adianta ter arma em casa. Eu sempre digo: vai comprar uma arma para quê? Para matar sua mulher numa briga ou para seu filho se matar numa crise de depressão?” Nos Estados Unidos, o país com a maior proporção de armas por domicílio, um estudo da escola de medicina de Stanford concluiu que há o dobro de mortes de crianças por arma nos estados onde as leis são mais flexíveis. Todo ano, cerca de 2 700 crianças e adolescentes morrem nos Estados Unidos vítimas de tiro.
No Brasil, no início de 2019, um acidente em casa tirou a vida do menino Jackson Silva, de 11 anos. A família vive em um sítio na cidade de Olho d’Água Grande, no interior de Alagoas, e mantinha uma espingarda calibre 12 para proteção da residência. O irmão mais novo de Jackson pegou a arma quando o pai, Jadielson Silva, estava fora, trabalhando — e acertou o irmão no rosto. “Não entendo por que meu moleque foi pegar aquela arma em cima do guarda-roupa”, lamenta-se o pai. No ano passado, pouco depois do Dia das Crianças, em 14 de outubro, Jheison Lopes Silveira, também de 11 anos, teve o mesmo destino trágico em uma chácara em Guarantã do Norte, em Mato Grosso. Um primo seu quis lhe dar um susto com uma arma de pressão. Disparou contra uma porta — mas o “chumbinho” ricocheteou e atingiu Jheison debaixo do braço, rompendo uma veia do coração. “Tive vontade de morrer no lugar do meu filho”, diz o pai, o eletricista Dione da Silva Pereira, que comprara a arma de segunda mão, por 1 000 reais. O juiz João Marcos Buch, de 49 anos, é um raro sobrevivente de acidente com arma de fogo na infância. Foi atingido no rosto pelo irmão, que brincava com a espingarda do pai, no início dos anos 1980, em Porto União, Santa Catarina. Por ser juiz — na Vara de Execução Penal, em Joinville —, João Marcos tem direito ao porte de arma. Mas ele é contra a facilitação do porte para civis. “Não é armando a população que vamos reduzir a violência. Já condenei muitas pessoas por crimes de latrocínio, roubo, homicídio, e as armas, na maioria dos casos, eram de origem lícita”, diz.
Uma pesquisa da consultoria Ideia Big Data publicada por VEJA na edição de 9 de janeiro revelava que só 8% dos brasileiros têm plano de comprar uma arma neste ano. Os aspirantes à arma própria podem ser poucos, mas são entusiasmados. Em um clube de tiro na Zona Oeste de São Paulo, o professor universitário Gustavo Molina Figueiredo, de 27 anos, diz que a eleição de Jair Bolsonaro — em quem ele votou — o estimulou a buscar uma arma legal, agora facilitada pelo decreto. “Acho interessante ter a posse, para proporcionar mais segurança à família. Espero nunca precisar, mas, se um dia tiver necessidade, quero saber atirar corretamente”, afirma. Gerente de contas em uma empresa de consultoria, o paulistano Felipe Szuster, de 26 anos, chegou ao mesmo clube de tiro no início da noite da terça-feira 15, acompanhado do irmão, Fernando, de 20 anos, que ganhou dele de presente um pacote de tiros no estande. Felipe Szuster também pretende entrar com a papelada para conseguir sua arma até o fim do ano. Planeja deixar a casa dos pais em breve, já com seu “brinquedo” — uma pistola automática, de preferência. São brasileiros que acreditam na arma como instrumento de defesa individual. No campo das estatísticas, porém, o quadro é mais complexo.
A taxa de homicídios no Brasil vinha subindo ano após ano até a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003. A partir daí, passou a cair, indo de 29,1 para 25,5 em 2005, quando foi realizado o referendo sobre a comercialização de armas. De 2005 para 2016, o índice voltou a subir gradativamente, chegando ao mesmo patamar de 2003. O que explica o sobe e desce? Armamentistas usam o estudo para corroborar a tese de que o estatuto, que pretendia conter os homicídios, fracassou. Já os desarmamentistas olham para a mesma pesquisa e enxergam números positivos: sem o estatuto, calcularam eles, a taxa de homicídios poderia ser 17% maior.
O principal ponto do estatuto, que poderia ser determinante na redução dos homicídios, não foi implementado — a aplicação de tecnologia e integração dos bancos de dados do Exército e das polícias Federal, Militar e Civil para o monitoramento de armas e munições. “Armas são diferentes de drogas. Elas nascem legais e são completamente passíveis de rastreamento. A gente só não monitora porque não quer”, diz Ilona Szabó, do Instituto Igarapé. Atualmente, coloca-se uma única identificação em lotes gigantes de munição, o que pouco contribui para o esclarecimento dos crimes. Munições do lote UZZ-18, comprado pelo Exército da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) em 2006, foram usadas para matar a vereadora Marielle Franco, para promover uma chacina em São Paulo e para realizar um assalto aos Correios de Serra Branca, cidade do interior da Paraíba. O lote tinha 2,4 milhões de balas. Se o lote identificado fosse menor, de no máximo 10 000 balas, seria possível aferir o momento em que saiu das mãos da polícia para o crime organizado. Atualmente, existe tecnologia até para colocar um GPS em cada arma e munição. O lobby da indústria armamentista alega que esses dispositivos aumentam demais o custo de seus produtos.
Professor da FGV, autor do Mapa da Violência e pesquisador do Ipea, o economista Daniel Cerqueira considera que uma arma é muito mais um instrumento de ataque do que de defesa e, inserida num ambiente urbano, ameaça outras pessoas. Para ele, a ciência é clara em dizer que, quanto mais armas em circulação, mais homicídios são praticados. A caneta Bic, diz Bolsonaro, é sua arma. Mas não serão canetas que estarão nas casas do país. Serão revólveres, pistolas, carabinas e espingardas que, a depender da vontade do Congresso, em breve também poderão estar na cintura dos brasileiros.
Com reportagem de Leonardo Lellis e Denise Chrispim Marin
Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618
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