No início do mês, o deputado Amom Mandel (Cidadania-AM) foi parado pela Polícia Militar quando trafegava por uma avenida de Manaus. O que seria uma simples abordagem terminou numa monumental confusão. O parlamentar, sentindo-se intimidado, deu voz de prisão aos PMs. Há duas versões para o caso. A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas diz que o carro do deputado foi abordado porque estava com as luzes apagadas, ziguezagueava na pista e usava uma película ilegal que impedia a visualização interna. Advertido, ignorou vários sinais sonoros e luminosos emitidos pela viatura. Interceptado, teria desembarcado, se identificado como congressista e protestado de maneira veemente contra a abordagem. Nervoso, ligou para o secretário de Segurança, que enviou um oficial ao local para tentar contornar a situação. Irritado, acusou os agentes de abuso de autoridade. O quiproquó invadiu a madrugada e terminou em troca de acusações numa delegacia.
Amom garante que nada do que os policiais relataram é verdadeiro. Segundo ele, os PMs apareceram de repente, interceptaram o carro e apontaram uma arma para sua namorada. Afirma que a abordagem truculenta não foi obra do acaso, mas parte de um processo de intimidação que vem sofrendo desde que pediu à Polícia Federal, no fim do ano passado, que investigasse a infiltração do crime organizado no poder público do estado. Na terça-feira 16, o presidente da Câmara, Arthur Lira, enviou um ofício à superintendência da PF no estado solicitando reforço na segurança pessoal do deputado. O congressista conta que passou a receber ameaças depois de repassar às autoridades um dossiê produzido pelo serviço de inteligência da própria Secretaria de Segurança do Amazonas que mostra as relações próximas das facções criminosas com o alto escalão da polícia local e, mais recente, também com personagens da política.
VEJA teve acesso ao dossiê entregue pelo parlamentar à Polícia Federal. É um compilado de relatórios de investigação e análises. Se autenticada a veracidade das informações, elas, de fato, contêm indícios graves sobre o nível da infiltração das organizações criminosas nos poderes estadual e municipal. Há, por exemplo, detalhes de uma suposta parceria realizada na campanha eleitoral de 2020 entre um dos chefes do Comando Vermelho e pessoas ligadas à campanha do atual prefeito de Manaus, David Almeida (Avante). “Era de interesse do CV/AM (Comando Vermelho), à época, ter essa aproximação com políticos, pois praticavam a invasão de terras, vendendo lotes, traficando drogas e cobrando uma espécie de condomínio de cada residência. Esse tipo de dinâmica foi interessante para a campanha de David Almeida, pois poderia levar serviços básicos a esses locais e aproveitar o voto de cabresto dessa população vulnerável”, informa um dos documentos.
O prefeito disse que as suspeitas são levianas e infundadas. “Esse dossiê teria sido supostamente feito pela inteligência da Secretaria de Segurança, mas não foi reconhecido pelo Executivo e sequer está assinado”, diz uma nota divulgada pela prefeitura de Manaus. A mesma parceria também teria sido feita em 2022 com pessoas ligadas à equipe de campanha do governador Wilson Lima (União Brasil). Em nota, a PF confirmou que há uma investigação sigilosa em curso. Deputado de primeiro mandato, Mandel se projetou na política amazonense com o discurso de combate ao crime organizado. Nos documentos que ele apresentou, há transcrições de conversas, fotografias e comprovantes de depósitos bancários de criminosos em favor de assessores de prefeitos e vereadores de municípios amazonenses. “Tais informações corroboram a tese de uma organização bem estruturada que, além de se utilizar dos tráficos de drogas, busca expandir suas conexões no universo da política do estado do Amazonas”, diz o relatório.
Um detalhe curioso: o dossiê tem um capítulo intitulado “Conjecturas sobre consequências futuras”, que sugere dez prováveis desdobramentos caso os dados coletados pelos agentes da Secretaria de Segurança viessem a público. Dois deles chamam a atenção. O primeiro, assertivo demais, diz que o prefeito poderia ter o mandato cassado diante da gravidade dos fatos. O segundo, mais colaborativo, sugere que o governador se prepare para enfrentar ataques relacionados ao suposto envolvimento de autoridades com o Comando Vermelho. Diz o analista: “É necessário que os agentes políticos tenham entendimento dos contextos citados para minimizar o quanto antes os efeitos colaterais ao governador Wilson Lima, propondo estratégias que blindem o mandato nos próximos quatro anos”. Não se sabe se essa recomendação chegou a ser repassada ao governador. Procurado, ele não quis se manifestar.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876