Como funciona o comércio ilegal que transforma papagaios livres em pets
Todos os anos, quadrilhas recolhem dos ninhos aves recém-nascidas para abastecer o mercado criminoso de bichos de estimação
A coleta de filhotes e de ovos de papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) no Cerrado brasileiro por traficantes de animais é um dos crimes ambientais mais previsíveis no país. Há décadas, entre agosto e novembro, período reprodutivo da espécie, quadrilhas recolhem dos ninhos as aves recém-nascidas para abastecer o mercado ilegal de bichos de estimação. Não há dados precisos que indiquem a quantidade de aves que perdem a liberdade ou morrem nesse processo, mas sabe-se que são milhares todos os anos.
“Pelo menos para a Região Metropolitana de São Paulo, certamente mais de 12.000 filhotes entram anualmente para atender o comércio ilegal”, afirma o presidente da ONG SOS Fauna, Marcelo Pavlenco Rocha, que há 18 anos acompanha o tráfico dos papagaios-verdadeiros do Cerrado. De acordo com a pesquisadora e coordenadora do Projeto Papagaio-verdadeiro, Gláucia Helena Fernandes Seixas, mais de 11 mil filhotes deram entrada no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) após serem apreendidos por órgãos de fiscalização no Estado nos últimos 32 anos.
E Gláucia ainda destaca: a maior parte das aves não é apreendida. “Considerando que muitos filhotes morrem nas diferentes fases desse ato ilegal, que envolve a captura nos ninhos, a manutenção em recipientes insalubres e o transporte inadequado, e que a fiscalização não consegue interceptar a maioria dos filhotes pegos ilegalmente na natureza, estima-se que os animais que chegam aos centros de triagem representam apenas uma pequena parcela do total de papagaios-verdadeiros retirados da natureza”, relata Gláucia, que desde 1992 atua na conservação da espécie.
Os papagaios-verdadeiros estão classificados na categoria “espécie quase ameaçada” na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção e pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês). “Esta categoria é atribuída às espécies que estão próximas ou apresentam grande probabilidade de chegarem ao status de ‘ameaçada de extinção’”, explica Gláucia.
A Amazona aestiva é uma das espécies contempladas no Plano de Ação Nacional para Conservação dos Papagaios (PAN Papagaios) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ela é apontada como a mais traficada entre as seis espécies incluídas no PAN e, segundo Gláucia, a mais visada pelo comércio ilegal entre as 12 de papagaios nativos do país. “Isso se deve a sua fama de ‘melhor falador’ quando comparada às demais espécies, característica que gerou a sua denominação como papagaio-verdadeiro”, explica a ambientalista.
O tráfico de fauna é uma das principais ameaças aos papagaios-verdadeiros. Eles também sofrem com a destruição e a descaracterização de seu habitat promovidas por desmatamento, queimadas e ampliação de pastagens e áreas agrícolas, além da caça por represália de agricultores desgostosos pelos danos gerados às plantações pelas aves.
Como agem os traficantes
Além de viverem no Cerrado, os papagaios-verdadeiros são encontrados na Caatinga, no Pantanal e na Mata Atlântica. Vivem em estados do Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Aves da espécie também habitam áreas da Bolívia e do Paraguai. Atualmente, o Cerrado é o epicentro do tráfico da espécie no Brasil, sendo o Mato Grosso do Sul o estado que considera essa atividade ilegal um de seus maiores problemas ambientais. As quadrilhas também agem em Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Minas Gerais, Maranhão, sul do Piauí e oeste da Bahia.
O Projeto Papagaio-verdadeiro, hoje executado pelo Parque das Aves em parceria com a Fundação Neotrópica do Brasil, foi criado por Gláucia em 1997 exatamente por causa da ação de traficantes de filhotes que agem no Mato Grosso do Sul. A partir das pesquisas que realizou e de que participou, Gláucia identificou que, em geral, a postura dos ovos ocorre em agosto, os nascimentos em setembro e o voo dos jovens em novembro.
Essa sazonalidade bem definida e o fato de os casais de papagaios-verdadeiros sempre buscarem as mesmas árvores para botar seus ovos e cuidar dos filhotes recém-nascidos permitem aos traficantes de animais um bom planejamento de suas atividades, bem como pouco esforço para recolherem suas “mercadorias”. No caso do Mato Grosso do Sul, cerca de um mês antes dos nascimentos, os criminosos se dirigem à região da divisa do estado com os territórios paulista e paranaense, onde acertam com sitiantes, assentados, trabalhadores rurais e outros moradores o preço pelos filhotes e os detalhes para a retirada deles.
A coleta das aves é mais intensa nos municípios de Jateí, Batayporã, Bataguassu, Ivinhema, Novo Horizonte do Sul, Anaurilândia, Santa Rita do Pardo, Nova Andradina, Brasilândia, Naviraí e Mundo Novo.
Rocha relata que os apanhadores de filhotes recebem entre 25 e 40 reais por cada um. O tenente-coronel Ednilson Paulino Queiroz, do Batalhão de Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul, afirma que o valor pode chegar a 60 reais. As pequenas aves, boa parte ainda sem penas e com olhos fechados, são armazenadas escondidas na mata, nos assentamentos ou nas próprias casas dos moradores que se envolvem com o tráfico de fauna. Elas são levadas para fora do estado em carros pequenos, onde viajarão por horas amontoadas em caixas, com pouca ventilação e água.
De acordo com Queiroz, a maior parte dos filhotes do Mato Grosso do Sul tem como destino a Região Metropolitana de São Paulo. Uma parcela menor segue para o Paraná. Rocha, da SOS Fauna, também destaca que aves coletadas no Cerrado de outros estados são destinadas para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Em território paulista, as aves são oferecidas em feiras de rua e pela internet por preços que variam de 200 a 450 reais cada. Uma ave legalizada custa mais de 3.000 reais.
O tráfico de ovos é um fenômeno conhecido, mas não há registros de apreensões por serem mais facilmente escondidos pelos bandidos. Em geral, eles são destinados ao mercado internacional pela facilidade de transporte, já que papagaios vivos são barulhentos e exigem mais espaço e cuidados.
Ações de fiscalização
Para tentar coibir a ação dos traficantes, a Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul tem diferentes estratégias. Os policiais passam nas propriedades que têm papagaios se reproduzindo para orientar moradores e vizinhos a não se envolverem com os traficantes de animais que encomendam os filhotes, patrulham áreas com ninhos que sejam possíveis de serem acessadas, montam bloqueios nas estradas rurais e monitoram, a partir de um banco de dados, moradores que já trabalharam para as quadrilhas.
Do efetivo de 330 policiais ambientais da PM do Mato Grosso do Sul, 25 são destacados para atuarem na repressão ao tráfico de filhotes. Os trabalhos são realizados a partir de levantamentos dos setores de inteligência da Polícia Militar. “Ainda alertamos os policiais rodoviários federais e as unidades da Polícia Militar de área, que têm sido fundamentais nesse período. Enquanto os policiais ambientais fazem o trabalho para evitar a retirada dos ninhos, a PM local tem conseguido apreender aqueles que não conseguimos evitar a retirada”, explicou Queiroz.
Apesar de o trabalho ser feito há anos, grande quantidade de filhotes ainda é retirada. Rocha é um crítico aos trabalhos realizados para reduzir o tráfico de papagaios-verdadeiros do Cerrado. “Nada mudou. Pelo contrário, nos últimos seis ou sete anos só vem piorando”, afirma. Para ele, a falta de articulação dos diferentes órgãos do próprio poder público, que também não chama instituições da sociedade civil para participar das ações, torna o trabalho ineficiente. “É preciso elaborar um protocolo de procedimentos que irá variar de estado para estado, além do que o poder público sozinho não tem força para isso devido às várias linhas de pensamento dentro de cada instituição”, resume o presidente da SOS Fauna.
Para Gláucia, a ampliação das ações de fiscalização contra o tráfico de papagaios-verdadeiros, iniciada nos últimos anos no Mato Grosso do Sul, é fundamental para coibir essa atividade nas regiões mais afetadas. “Porém, é importante que se mantenham, ano após ano, no período de maior intensidade de reprodução da espécie, em toda a extensão do Cerrado e Mata Atlântica do estado. Assim, de forma contínua e eficaz, é possível ter resultados positivos em médio e longo prazos”, ressalta.
Queiroz, da PM Ambiental, considera ser necessário o aumento das penas. Atualmente, apesar de o tráfico de fauna não ser um crime tipificado nas leis brasileiras, as atividades que o formam, como a captura, o armazenamento, o transporte e a venda de animais sem autorização do poder público são ilícitos previstos na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998). Pelo fato de a pena prevista para esses crimes ser de seis meses a um ano de detenção, eles acabam classificados pela Lei nº 9.099/1995 como de “menor potencial ofensivo”. Isso faz com que para esses delitos seja elaborado um Termo Circunstanciado de Ocorrência e haja a possibilidade de ser arbitrada uma fiança ao suspeito, que em geral responderá pelo crime em liberdade.
Nesses casos, o Ministério Público também é obrigado a oferecer a possibilidade da transação penal (pagamento de multa ou realização de atividades para a comunidade) que, se aceita pelo suspeito, faz com que não haja abertura de processo judicial. “Para se ter ideia, houve traficante que prendemos três vezes no mesmo período reprodutivo”, relata Queiroz.
Consequências do tráfico
A redução da população de papagaios-verdadeiros pela ação dos traficantes de animais não é resultado somente da retirada constante de filhotes e ovos. Para essas aves, os ninhos são os ocos e as cavidades existentes nos troncos de árvores como a bocaiuva ou o jerivá que, não raramente, são danificados durante sua ação. Cada vez mais há menos cavidades disponíveis para a reprodução da espécie. “O resultado disso tudo é que muitas populações naturais de papagaios-verdadeiros podem estar diminuindo ou envelhecendo”, explica Gláucia.
Com menos aves cumprindo suas funções ecológicas, existe a possibilidade de ocorrer alterações e desequilíbrios nos ecossistemas onde vivem. Outro problema é a possibilidade da transmissão de zoonoses, as doenças transmitidas por animais aos humanos. No caso dos papagaios-verdadeiros, pode-se destacar a psitacose, enfermidade endêmica no Brasil, de diagnóstico complexo e que pode causar pneumonia nas pessoas, levando-as à morte.
Um mercado incentivado pela cultura
Desde a chegada dos portugueses no Brasil, no século 16, papagaios são criados como animais de estimação no país. A atração por essas aves está na interação delas com as pessoas e no potencial de imitarem a voz humana. Até 1967, quando entrou em vigor a Lei nº 5.197, o Estado brasileiro pouco atuou na regulamentação da captura, comércio e criação de animais silvestres como bichos de estimação.
Atualmente, existem no Brasil diversos criadores comerciais legalizados de papagaios-verdadeiros. De acordo com o relatório Crueldade à Venda – O problema da criação de animais silvestres como pet, lançado em 2019 pela ONG Proteção Animal Mundial, dos 246 criadouros comerciais legalizados de aves nativas do país, 74 reproduzem e vendem Amazona aestiva. Ainda assim, o tráfico da de aves da espécie é intenso, sendo o oitavo animal mais traficado do país entre 1998 e 2018, segundo pesquisa citada pela ONG em sua publicação.
Para o gerente de Campanhas de Vida Silvestre da ONG, o biólogo Maurício Forlani, o comércio legalizado não tem uma ação efetiva contra o tráfico, tanto que as espécies mais comercializadas legalmente por anos têm grande sobreposição com a lista das mais traficadas. “A redução da demanda por animais silvestres é sem dúvida uma das maiores forças contra o tráfico”, afirma o ambientalista, que defende também o fim do comércio legalizado de animais silvestres para o mercado pet.
Segundo Forlani, investir em educação ambiental é essencial para conseguir fazer as pessoas enxergarem que gostar de um animal não significa ter posse sobre ele. “Não vejo a repressão de forma isolada como um meio efetivo no combate ao tráfico de papagaios, mesmo que sejam feitos os avanços necessários na legislação. Temos que diminuir a demanda por papagaios silvestres e investir em programas que tragam a população para desfrutar da natureza no ambiente natural”.
Gláucia concorda. Ela considera ser essencial ações de sensibilização das comunidades locais onde ocorre o tráfico e a mobilização da sociedade para que as pessoas não comprem os papagaios.
Link original: https://brasil.mongabay.com/2020/08/como-funciona-o-comercio-ilegal-que-transforma-papagaios-livres-em-pets/